Karioka: o mar variado – Por Ana Maria de Souza
Ana Maria de Souza. Pesquisadora autônoma no campo do cinema autoral e independente, com interesse no estudo das tendências contemporâneas da produção audiovisual brasileira e o diálogo com o cinema moderno e clássico.
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Karioka: o mar variado
Com Karioka (2014), o cineasta indígena Takumã Kuikuro relata experiências singulares de deparar-se pela primeira vez com o mar na cidade do Rio de Janeiro. A família sai da Aldeia Kuikuro, no Alto Xingu/MT, para morar durante um período na cidade do Rio de Janeiro. O filme coloca em cena o diálogo implícito entre os dois espaços: a aldeia e a cidade. Poucos diálogos acontecem fora da aldeia. A mise-en-scène demarca o lugar (geográfico, cultural, político, afetivo) de fala e de produção de sentido: os diálogos, os relatos orais (falados na língua indígena) acontecem no território do povo Kuikuro, nos espaços da alteia, particularmente no interior da oca.
O fluxo narrativo entremeia os relatos que partem da aldeia com planos da cidade focalizando, sobretudo, as crianças indígenas e sua relação com o mar, a praia e o seu entorno. Este movimento opera por contrapontos entre as imagens da amplidão do mar e os espaços da aldeia e do interior da oca; entre a fala dos adultos e as imagens das crianças.
É notável como, em momento algum, os relatos e falas explicam ou comentam o que está sendo mostrado. Ao contrário, o que é ressaltado é a não correspondência indenitária entre a fala e as imagens que aparecem na tela. Esta é uma linha forte que atravessa o filme apontando para a relação de não reciprocidade entre as palavras e as coisas.
A sensação de descompasso entre a fala e o que está sendo mostrado nas imagens pode ser notada, por exemplo, na sequência em que a mãe de Takumã Kuikuro, reproduz as narrativas recorrentes sobre a cidade do Rio de Janeiro como um lugar perigoso, e povoado de bandidos. Enquanto ela fala tem-se o contraponto de uma diversidade imagens das crianças indígenas brincando alegremente na mureta da praia/calçadão, no parque e no transporte coletivo.
Entretanto, é nos pequenos fragmentos dos relatos sobre o primeiro encontro com o mar, que emergem as preciosas bifurcações de sentidos. Marrayury Kuikuro conta que comprou um sabonete com a intenção de usar e lavar a roupa no mar: “A espuma não saiu porque a água é salgada. […] lá ninguém se lava no mar. A água do mar não é para lavar seu corpo. A água do mar é somente para brincar”.
São relatos que desestabilizam as percepções cristalizadas e fazem a palavra “mar” funcionar em outros registros e códigos de comportamentos. Os sentidos variam e a palavra mar aparece então em sua dimensão errática, fora da captura da identificação e das definições e usos convencionais: “Usar a água do mar para salgar a comida”, “Rio de Janeiro é um lugar de colar as miçangas”.
Com esses pequenos desvios de significados que aparecem ao longo do filme, o cineasta Takumã Kuikuro faz sobressair toda a estranheza de deparar-se com um estado de coisas desprovidas do sentido e da coerência cotidiana.