Lacuna – Por Aline Wendpap
Na coluna mensal “Sonora”, Aline Wendpap escreve sobre cinema e audiovisual, dedicando-se principalmente a tessitura de textos críticos, com ênfase na produção mato-grossense, nacional ou ainda latino-americana. O título da coluna visa brincar com a palavra, que tanto é ruído, quanto pode ser uma conversa ou um som bacana. Não deixa de ser uma homenagem ao som, característica vigorosa do cinema, além de se parecer foneticamente com Serena, nome de sua bebê. A coluna irá ao ar sempre no último domingo do mês.
Aline Wendpap é cuiabana “de tchapa e cruz”, nascida em 1983. Primeira Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pelo PPGECCO da UFMT, Mestre em Educação pela mesma Universidade, Bacharel em Comunicação Social – Habilitação: Radialismo (UFMT), integrou o Parágrafo Cerrado, coletivo dedicado a leituras de cenas de espetáculos. É autora do livro A Televisão sob olhar das crianças cuiabanas (2008, EdUFMT).
Lacuna
(Anna Maria Moura, 3”40’) 2021.
Por: Aline Wendpap
Vídeo-poema, denúncia, desabafo… qualquer um destes qualificativos poderia ser a tradução de “Lacuna”, assinado pela multiartista Anna Maria Moura e possibilitado pelo Edital RespirArte 2020, promovido pela Funarte.
Conduzidos pela narração da própria Anna Maria somos confrontados com imagens singelas e diria até bucólicas da família Piauí, gravadas no ano de 2019 durante um encontro na cidade de São Félix do Araguaia. Essas imagens colaboram para vivificar os versos proferidos pela artista e demonstram a contradição entre o que é dito e o que é mostrado em tela.
Por se tratar de imagens de arquivo, o mais interessante é justamente a costura realizada entre imagens e poesia, que de algum modo parece funcionar como um grito de guerra, que convoca à luta todos os espectadores, porém cada um escolhe sua maneira de lutar.
O primeiro som que se faz ouvido são respiros ofegantes, que nos remetem a um ato sexual, ainda mais porque vemos algumas redes balançando, entretanto, logo que a narração começa de fato e a câmera vai se movendo, somos dissuadidos desta ideia, até porque, crianças aparecem na cena brincando por entre as redes.
A partir disso vai emergindo a compreensão de que mesmo com tantas agruras enfrentadas – sobretudo pelos corpos femininos – a vida pode ser leve, pode haver uma “lacuna” onde o companheirismo e a união colaborem para a solidificação das relações.
Paradoxalmente, à medida que a autora afirma não caber naquilo, ou seja, na realidade que nos é apresentada, ficamos intrigados, pois quem está fazendo as imagens? Parece ser alguém íntimo da família, provavelmente a própria Anna, que mesmo não se sentindo totalmente confortável faz parte, está inserida e é integrante da família.
Alguns pontos podem provocar uma conotação de superioridade, como quando ela fala “cês não percebem que eu sou subjetiva demais, inconstante demais, intensa demais, insubmissa demais…” ainda mais quando as imagens que estamos vendo são de mulheres simplórias e fazendo banalidades, cuidando de crianças e comendo, nada demais…
A imagem de uma galinha ciscando e procurando algo para comer no chão é enigmática, pois neste trecho do poema ouvimos “A minha vivência não é comparativa, meu Lattes não avalia o meu conhecimento, a sua nota no Enem não avalia o seu conhecimento, o seu desdém por quem engravida antes de terminar o Ensino Médio é que avalia o seu discernimento”. Afinal, uma galinha vive praticamente de migalhas, come tudo o que vê pela frente, não tem um discernimento muito apurado e é vista como sendo um animal de cérebro pequeno, que vale pelo seu tamanho, pelos seus ovos, pela sua carne…
A finalização com a câmera subindo em direção ao céu, depois de mostrar pessoas numa canoa, geram a sensação de crescimento e liberdade, ainda mais porque ela diz num dos momentos finais “o ilógico é que faz sentido”. Nesta cena, o silêncio vai ressoando com tudo o que foi cantando e vai decantando todas as impurezas, que ainda podem estar impregnadas no nosso modo galináceo de ver a vida.
É um curta que vale a pena ser visto, revisto e compartilhado, sobretudo entre as mulheres, como uma forma de celebrar as diferenças, incompletudes e distintas perspectivas.