“Malina” de Ingeborg Bachmann – Por Andri Carvão
“O canal que mantenho no YouTube desde outubro de 2021, Poesia Nunca Mais, onde indico livros e compartilho algumas de minhas leituras, deu margem a que eu escrevesse minhas impressões de leituras como roteiros para a realização dos vídeos. A princípio em forma de tópicos, resolvi organizar os escritos de modo a que pudessem ser lidos em algum meio: blog, rede social, site etc. Com a apreciação sobre Malina de Ingeborg Bachmann prosseguimos com a coluna “Traça de Livro: …impressões de leitura…”.
Vida longa à Ruído Manifesto e aos seus leitores!”.
Andri Carvão é formado em Letras pela Universidade de São Paulo, autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva e O mundo gira até ficar jiraiya, dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e publica poemas quinzenalmente no site O Partisano.
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Malina | Ingeborg Bachmann
Malina é um romance da escritora austríaca Ingeborg Bachmann (1926-1973) publicado em 1971.
O tempo da narrativa é hoje. “Quanto ao grande tempo, aos grandes tempos, ocorre-me contudo algo, mas não estarei dizendo nada de novo: a História ensina, mas não tem alunos.” (p. 72)
A história é narrada em primeira pessoa. A narradora-personagem faz um tour pelo bairro até a Rua Ungargasse em Viena, onde vivem os três protagonistas da trama: eu (narradora não nomeada), Ivan e Malina.
A apresentação das personagens se dá como a marcação de uma peça teatral.
Dividido em três partes, o romance é composto por fragmentos.
No primeiro capítulo, Feliz com Ivan, temos a relação entre a narradora e Ivan (ambos residem na mesma rua). Ivan tem dois filhos, Béla e András. Ele mora na casa 9 e a narradora na casa 6.
Ela espera pela ligação de Ivan ajoelhada próxima ao telefone.
Sua visão sobre crianças:
“Sabe, a absorção talvez não seja o meu forte, imediatamente eu vejo aglomerações, por exemplo, crianças em playgrounds; mesmo admitindo que uma aglomeração seja especialmente terrível para mim, é-me totalmente incompreensível como crianças podem aguentar no meio de tantas outras. Crianças, distribuídas por entre adultos, ainda vai, mas o senhor já esteve algum dia em uma escola? Nenhuma criança, a menos que seja totalmente débil mental ou profundamente corrompida, o que provavelmente a maioria é, pode querer viver num amontoado de crianças, viver os problemas de outras e dividir com elas, além de algumas doenças infantis, seja lá o que for, por mim, até mesmo uma evolução. Por causa disso a visão de todo e qualquer agrupamento de crianças já é alarmante.” (p. 74)
Às vezes os dois jogam xadrez na casa de Ivan, outras vezes ele leva o tabuleiro para a casa dela.
A secretária particular, Srta Jellinek, é responsável por redigir as cartas pessoais e profissionais ditadas pela narradora.
Após ler tudo que havia para ler, ela decide escrever um livro para Ivan (este Malina que o leitor tem em mãos). “(…) e li tudo sobre tudo, em quatro idiomas, fortiter, fortiter, e entendi tudo o que há para ler. E por uma hora, liberta de tudo o que li, deito-me ao lado de Ivan e digo: Escreverei esse livro, que ainda não existe, para você, se você realmente o quiser. Mas você precisa querê-lo de verdade, querê-lo de mim, e eu nunca exigirei que você o leia.” (p. 65).
Como ela sabe que Ivan não a ama, tenta conquistá-lo pelo estômago. “Cortei a carne em pedaços assimétricos. Piquei cebolas, deixei à mão páprica doce, pois hoje há pörkölt e, antes, ovos ao molho de mostarda; reflito se depois bolinhos de abricó não seriam um exagero, talvez seja melhor uma fruta (…)”, etc. (p. 66) E também pela aparência. “(…) e enquanto despejo água quente e tosto fatias de pão, eu aplico o rímel, pinto os olhos diante do espelho de barbear de Malina, ajeito com a pinça as sobrancelhas, e esse trabalho sincrônico, que ninguém valoriza, é o mais cansativo de quantos fiz antes.” (p. 67).
Na entrevista de emprego com o editor Sr. Mühlbauer para o jornal Edição da Noite, quando é perguntada sobre livros:
“Livros? Sim, leio muito, sempre li muito. Não, não sei se estamos entendendo um ao outro. Prefiro ler no chão, também na cama, quase sempre deitada; não, os livros não têm tanta importância, o que mais importa é a leitura, o negro sobre o branco, as letras, as sílabas, as linhas, essas fixações desumanas, os sinais, os assentamentos, essa loucura cristalizada em expressão, que vem dos homens.” (p. 75)
Ela é sempre incitada para lutar por uma causa. Malina diz: “Isso só pode acontecer com você, você é a pessoa mais nova que existe.” (p. 91) Mas ela não aguenta mais guerras reais, ou retratadas em filmes. Sua rua, a Rua Ungargasse, é o seu único país.
Ivan tem dois filhos. Constrangida, ela pega carona com ele. Para isso os meninos que ocupavam o banco de passageiro ao lado do motorista são colocados no banco traseiro. Ivan tenta entabular uma conversa com ela durante o percurso, mas é interrompido a cada minuto por Béla e András.
“Ivan e eu: o mundo convergente. Malina e eu, porque somos um: o mundo divergente.” (p. 101)
Ela vai com Ivan e as crianças ao zoológico e assim fica amiga da família.
Ivan precisa resolver algo fora e como as crianças a adoram, ele as deixa com ela.
A segunda parte é sobre Malina e o tempo não é hoje, é um tempo indeterminado, um tempo entre passado, presente, futuro e sempre.
O capítulo O terceiro homem trata sobre o pai e sua relação incestuosa com a filha. Seu pai resolve demolir sua biblioteca particular. Ele usa o termo “demolir” e para isso pede a ajuda de outros homens. Em dado momento insinua oferecer a filha como forma de pagamento.
O tom do capítulo é onírico, como um sonho.
A terceira e última parte do romance se chama Dos fins últimos.
Interessante a atração que os trabalhadores de rua, em especial o carteiro, desperta na narradora. Ela não chega a flertar, mas confessa que ruboriza em sua presença. Nesse capítulo ela conta a história de um carteiro que deixa de entregar as correspondências, passando a armazená-las em sua casa. Comenta que a um profissional como esse não é dado o direito de pensar diferente e extravasar as suas idiossincrasias.
O livro trata sobre um triângulo “amoroso” que não se consuma nem pelo amor nem pelo sexo. O que acontece é o desejo, a atração e um impasse entre os três.
“É muito simples. Você só precisa tornar alguém suficientemente infeliz; por exemplo, não ajudá-lo a reparar uma tolice. Quando você estiver certa de tê-lo feito bem infeliz, ele também pensará em você. Mas em geral são os homens que fazem as mulheres infelizes, e não existe uma reciprocidade, pois a nossa sina é a infelicidade natural, inevitável, advinda da doença dos homens, que obriga tanto as mulheres a pensar e, nem bem iniciadas, a se reorientar, pois, quando se é obrigado a pensar incessantemente em alguém e a criar sentimentos para esse alguém, acaba-se mesmo infeliz.” (p. 219)
Ela tem uma paixão não correspondida por Ivan. Ela e Malina dividem o mesmo teto, porém sem amor/sexo, apenas amizade. Ivan vive com os dois filhos e a sombra da (ex)mulher (?). Ela e Ivan vão ao cinema com as crianças, frequentam um a casa do outro (a dela, na ausência de Malina), jogam xadrez, tomam vinho e nada mais do que isso. Malina, ao chegar em casa, nota duas taças e o tabuleiro de xadrez montado num jogo abandonado pela metade (tal qual a relação ambígua entre o trio) e, conforme a sua leitura da posição das peças, opina sobre o possível vencedor da partida; quanto as duas taças, pelas observações de Malina, percebemos o seu ciúme.
Curioso o título Malina para o romance de Ingeborg Bachmann, já que na história Ivan é quem divide o protagonismo com a narradora personagem. Malina sequer nomeia um dos capítulos.
Ela vive com Malina na casa 6 e Ivan com os filhos na casa 9 da Rua Ungargasse em Viena. Ela deseja Ivan, mas não há reciprocidade. Malina sente ciúmes, embora não tenha um relacionamento conjugal com ela. Malina é um romance do impasse, do travamento, do desejo e do amor não correspondido.
Edição lida:
BACHMANN, Ingeborg, Malina, tradução: Ruth Rohl, 272 p., Editora Siciliano, 1ª edição, 1993.