Manifesto Periférico – Mateus de Morais
Mateus de Morais, 21 anos, formado em Letras Português. Possuí um perfil literário no instagram e no youtube chamado “Recantoinsano” onde compartilha seu amor pela literatura com edições de fotos bem legais e uma pitada de bom humor. Publicou em algumas antologias de terror e tem um conto solo na Amazon de suspense chamado “O tênue brilho da inocência”, que fala sobre violência doméstica.
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Fuga à Liberdade
Não conseguia tirar o sorriso do rosto, pela primeira vez na vida sentia-se feliz, não era como antes que precisava fingir estar alegre, usar uma máscara que os outros queriam ver. Naquele momento ela era simplesmente o que sempre foi, mas que os outros não aceitavam. Estava correndo para sua liberdade.
Os cabelos balançavam ao vento, sorria para as pessoas. Enfim encontrara a solução para os seus problemas; não haveria mais briga dos pais, não haveria mais xingamentos dos colegas, não haveria mais provas, não haveria mais pressão… ela estaria sozinha, estaria livre. Buscou inúmeras opções, que não fossem essa, mas no fim fugir pareceu ser a melhor de todas.
Fugir…
Distanciar-se de todos, seria bom pra ela e com certeza também para os outros. Enquanto corria para sua libertação tentava pensar em algo que a fizesse voltar, mas nada parecia ser um motivo forte o bastante para mantê-la ali. Na verdade achava que seria um grande alívio para todos, ninguém sentiria sua falta mesmo. Talvez algum dos amigos de seus pais perguntassem pela filha deles, e eles responderiam: “Ah, ela nos abandonou!” e o outro acrescentaria: “Melhor assim”. Sim, era melhor assim.
Em nenhum momento ela olhou para trás. Não havia nada além do grande peso que estava tirando das costas. Ela já tinha comentado que iria fugir, mas ninguém pareceu acreditar que ela teria coragem, pelo menos quando por um segundo derem por sua falta verão que sim, ela teve.
Estava agora correndo sobre a ponte e em nenhum momento ela hesitou, simplesmente correu até a beirada e se jogou em direção ao abismo da liberdade. O impacto e os olhos se fechando selaram sua libertação eterna de que tanto precisava.
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Metamorfose por obrigação
E era ali, naquele beco escuro, comendo lixo e tendo os ratos por companhia que ele vivia. Era um cachorro. O mais estranho dos vira-latas, o que às vezes atraía a atenção de alguns dos pedestres que passavam por ali. O pobre, vivia encolhido em seu cantinho. Nas noites frias, como era o caso desta, embolava-se em um canto ao lado da lata de lixo, e com muita esperteza, para alguém da raça dele, entrava no objeto e se cobria com os detritos, deixando apenas sua cabeça pra fora.
Quando o dia amanhecia ele tentava a sorte. Saía para a vista dos caminhantes. Daquelas pessoas estranhas, de uma outra raça, uma raça que poderia facilmente mudar sua condição. Mas era um tipo egoísta de ser. Ninguém dava atenção a um simples cachorro vira-lata e todo sujo. Um animal faminto, fedido e indigno até mesmo de pena. Nada servia seus olhos de pedinte. De nada servia seu aspecto deplorável. De nada servia suas balbucias para chamar atenção, para ser notado ao menos por um segundo por aquelas entidades poderosas e egoístas.
Ele vivia no esquecimento. Em uma outra dimensão. Um lugar onde não passava de um inseto… Pelo menos não o haviam esmagado, ainda.
Quando tentava ser ousado e puxava a barra das vestes de alguém, o que recebia em troca era um chute e alguns xingamentos. E era nessa hora que chorando, volvia-se a seu beco e procurava algo novo pra comer nas latas de lixo. Às vezes espiava as ruas e via alguns de seus semelhantes andando com seus donos, a inveja e o desejo preenchiam o seu corpo. Nessas horas de inveja, sentia vontade de atacar, de morder aquelas criaturas que o tratavam como não mais que os detritos que ele achava nas latas.
Por vezes quando desistia daquela luta por sobrevivência, daquela vida de miséria, e ficava em um canto aguardando a tão esperançosa morte, ele ouvia o que os Superiores falavam. Será que eles não sabiam que ele conseguia entender o que diziam? Ou eles eram malvados e já diziam aquilo no intuito de feri-lo? Ele não conseguia responder, por isso apenas chorava em seu canto.
Como uma espécie podia ser tão cruel?
Ele lembrava-se de sua mãe. Ela fazia tudo para mantê-lo vivo e bem. Ele quase riu lembrando das coisas que já fizera com ela. Mas então lembrou-se do dia em que sua mãe já cansada da vida que estavam levando, resolveu fazer uma coisa que o aconselhara a nunca praticar, ela decidiu roubar. Não que ela fosse sem caráter, longe disso. O problema estava em sua situação, nas condições em que vivia. E se ainda havia alguma dúvida do quanto Eles eram malvados, essa dúvida acabou ali. A mãe, nada mais que uma criatura magrela e faminta que roubara apenas para alimentar sua cria, foi alvejada cruelmente, perfurada como uma folha de papel. Um grupo de quatro integrantes fizeram seu corpo de peneira. E ele foi obrigado a assistir enquanto as facas desciam em golpes consecutivos sobre seu corpo. E quando terminaram atingiram-no na cabeça. Acordou muito tempo depois já nesse beco, nesse lugar diferente, onde não conhecia nada e não passava de mais um cão nas ruas.
E assim eram seus dias… Certa vez ele ouviu falar de um lugar pra onde “coisas” como ele eram levadas. Mas ele nunca se importou, não parecia ser um lugar para onde poderia ser levado…
Ocasionalmente se pegava imaginando como as coisas seriam se ele tivesse nascido de uma outra mãe. Mas como isso não havia acontecido e nem poderia acontecer mais, aceitava sua condição e chorava em seu canto, embrulhado sobre o próprio corpo…
Amaldiçoando em pensamento essa maldita humanidade que conseguia transformar ele, um simples menino de rua em um animal asqueroso… amaldiçoava essa metamorfose que o obrigavam a ser…
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O Mão Fina
Estavam os quatro à mesa. Não havia nada de diferente. A mesa sustentava um jantar farto, fruto de uma boa colheita e preparada com afinco pela mãe. Todos comiam com gosto, menos a menina. Essa olhava para a comida com desprezo e fingia cara de vômito sempre que olhava as verduras que tinha no prato.
– Come tua comida, Eva! – O pai falou incisivo. No entanto a menina com toda a ousadia dos seus 10 anos se manteve irredutível.
– Se você num cumê tudinho o Mão Fina vai vim te pegá – provocou o irmão.
– Não existe Mão Fina, eu não sou mais criança pr’acreditá nessas coisa – disse a menina com um olhar superior para o irmãozinho.
A mãe interveio também, todos falaram, mas no fim a menina não comeu o verde e ficou sem sua colher de doce de leite. Ficou triste, mas aceitou que uma colher de doce a menos era uma boa troca para não sentir o gosto da rúcula em sua boca.
Sentaram um pouco na sala conversando até que deu a hora de irem dormir. A mãe a pôs na cama, ajeitou seu lençol, trancou a janela, deu-lhe um beijo, apagou a luz e fechou a porta a suas costas. Assim que a escuridão preencheu todo o quarto Eva lembrou-se do irmão falando do Mão Fina. Não queria pensar naquilo, era óbvio que não existia, era apenas uma história para assustar os bebezinhos e ela já era grandinha. Porém, parecia que quanto mais se esforçava para não pensar naquilo mais era atraída por tais pensamentos.
Olhou a completa escuridão a sua volta e sentiu como se ela estivesse mais pesada, por um milésimo de segundo poderia jurar que vira algo se mover. Fechou os olhos. Alguns cachorros começaram a latir do lado de fora da casa. Aquilo disparou seu coração. Os latidos pareciam lamentos. Se cobriu com o lençol. O pano era o seu escudo. Enquanto estivesse ali embaixo quietinha, estaria segura.
Agradeceu quando seus olhos começaram a ficar pesados e aos poucos foi perdendo a força de mantê-los abertos…
…acordou com um som peculiar de algo se arrastando pelo chão. Um som farfalhante que parecia vir da porta. Sentou na cama e espiou. A vista ainda estava se readaptando a escuridão. Seu coração disparou quando viu uma sombra de duas mãos surgirem por baixo da porta. Um calafrio subiu por seu corpo e congelou sua espinha. A língua travou dentro da boca e ela não conseguiu gritar. Piscou os olhos e ao olhar novamente não viu mais nada. Entrou novamente para debaixo da sua fortaleza.
Será se realmente tinha visto algo ou ficara apenas encabulada pelo que o irmão dissera? Pensava na pergunta quando ouviu um arranhar de unhas em madeira. Levantou um pouco o lençol para olhar a sua volta, mas não viu nada. Será se deveria chamar os pais? Não, ela lutara muito para eles a deixarem dormir sozinha, se fizesse alvoroço por uma coisa que não existia certamente eles voltariam atrás na decisão. Ficou atenta por alguns segundos para perceber algo, mas não ouviu mais nada. Se encolheu de volta embaixo do escudo e tentou dormir.
Já estava conseguindo quando um súbito sentimento alfinetou seu cérebro. “Ele está embaixo da cama!”, “Isso é loucura, é claro que não está, Eva!”. Mas e se estivesse? Ela não queria morrer por não ter olhado o que tinha embaixo da cama e não iria chamar pelos pais sem ter certeza. Lembrou que havia uma lanterna na mesa de cabeceira. Percebeu que estava tremendo quando se esticou para alcançar o objeto. O feixe de luz trêmulo atingiu a parede do quarto e percorreu o piso até o pé da cama. O compasso desritmado de seu coração era o único som que ouvia quando se inclinou na beira da cama para espiar embaixo… nada. Respirou aliviada.
O alívio durou pouco, pois naquele instante ela ouviu o som de algo arranhando a madeira novamente. Apontou o feixe da lanterna para a janela e viu a marca de cinco arranhões. Ao mirar na porta encontrou mais arranhões de garras e pior, ela viu algo rastejando muito rápido e passando pela luz. Não conseguiu ver o que era. Moveu a lanterna em todas as direções procurando o vulto, ainda conseguiu ver a sombra de duas mãos longas e finas antes que a lanterna se apagasse e não voltasse a acender. Ela ia gritar, mas sua língua enrolou-se na boca e nenhum som saiu.
O desespero arrepiou todos os pelos de seu corpo. Naquele momento ela só queria gritar pela mãe, mas nenhum som ultrapassava a barreira que sua língua produzia contra os dentes. Ficou imóvel no escuro, não sabia o que fazer, estava com medo de descer da cama e aquela coisa a atacasse. Na verdade nem sabia se conseguiria levantar da cama. De repente ela sentiu frio, foi então que viu que o pé estava pra fora do seu escudo e rapidamente o cobriu. Naquele momento sentiu o colchão abaixar um pouco como se alguma coisa houvesse subido sobre ele.
Algo gelado roçou nos seus pés e foi quando sentiu o nó de sua língua se desfazendo e emitindo um ressoante grito. Algo puxou seu lençol e ela ouviu o som dele se rasgando. Sentiu uma mão gelada agarrar seu tornozelo e começar a puxá-lo. Ela por sua vez gritava e se debatia, chamava pelos pais, que logo entraram no quarto e acenderam as luzes. A mão soltou seu tornozelo.
– O Mão Fina… – a menina resmungou pulando da cama e correndo para os braços da mãe.
– Não existe isso de Mão Fina, meu amor – a mãe disse consolando-a e secando seu rosto banhado em suor. – Você deve ter sonhado.
– Acho que num foi sonho não, mamãe – disse o irmãozinho levantando o lençol da menina e exibindo os cinco cortes feitos por uma garra.
– Posso dormir com vocês, por favor? – A menina pediu chorando.
– Claro, meu amor – disse a mãe vendo a marca roxa de cinco dedos fechados em volta do tornozelo da filha.
Estavam saindo do quarto. Eva nunca mais deixaria de comer uma folha verde que fosse colocada no seu prato. E quando olhou mais uma vez para dentro do quarto e viu duas mãos finas, esqueléticas, e um par de olhos vermelhos ela também nunca mais dormiu sozinha.
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mARCUS
GOSTEI MUITO DOS CONTOS. PRINCIPALMENTE DOS FINAIS. ACHO QUE TODOS OS CONTOS DEVERIAM TERMINAR ASSIM COM FINAIS SURPREENDENTES…