Manifesto Periférico – Thamires P.
Thamires P. tem 25 anos, é moradora de Belford Roxo (RJ) e estudante do curso de Letras Português/Literaturas no campus de Nova Iguaçu da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Escritora desde os 18 anos, possui textos publicados em duas antologias: “Carolinas: a nova geração de escritoras negras brasileiras” (FLUP/Bazar do Tempo, 2021) e “Poetas negras brasileiras: uma antologia” (org. Jarid Arraes/Editora de Cultura, 2021).
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VOZES
eu escrevia para falar
o que eu não sabia dizer
eu escrevia para mim
(era o que eu achava),
até que um dia
o amigo de uma amiga
leu meus versos e
foi salvo de uma crise
e o que é isso?!!
meu poema envergonhado
pode salvar o outro?
o que é isso?!
até os dezoito anos
eu não sabia o que era poesia
nem que palavra tinha poder
hoje as minhas palavras salvam
e como é isso?
eu escrevo sobre a cor da minha pele
sobre crises identitárias
sobre crises de ansiedade
dores autobiográficas
escrevo sobre pseudo-amores
pseudo-sexos
desejos que se corporificam
ou que se desmancham no imaginar
escrevo sobre o abandono da cidade
sobre o elitismo inato à academia
sobre o jardim de minha mãe
sobre a primeira vez que fui ao centro sozinha
como pode?
me parece tão singular, tão meu
o que obviamente é uma experiência coletiva
será que penso, então, ser incapaz
de falar com o outro?
ser incapaz de ser entendida?
ser incapaz?
minha dicção é ruim,
tremo ao falar com/para desconhecidos,
mas, na escrita, eu falo com quase todo mundo
e não sinto medo
foi então que me dei conta de que
quando digo eu
digo você
digo nós.
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FADIGA
há crostas infinitas de cansaço
se apoderando de meu corpo
meus dentes estão cansados de mastigar a mesma comida
meus dedos estão cansados de batucar película de vidro
meus olhos estão cansados de encarar a mesma tela
meus braços estão cansados de me abraçar
minha pele está cansada de não sentir o atrito
ela empalidece enquanto se afasta do sol
minhas unhas estão cansadas de serem lixadas
meus cabelos estão cansados de crescer
meus ouvidos estão cansados das mesmas notícias
que se entranham bem dentro da minha cóclea
meus pensamentos estão cansados de ruminar pretéritos
minha boca já cansada de falar
do
mesmo
dia
desde o ano passado
estou cansada de estar parada
um cansaço irônico
uma piada de mau gosto com a minha cara
as crostas infinitas de cansaço
se apoderam de mim
e nada posso fazer porque
cansei
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O PLANO
meu primeiro beijo foi tão ruim,
mas tão ruim que
senti repulsa pelo ato de beijar.
eu era uma garota tímida e sem referências,
então qualquer coisa me servia naquele momento.
lembro que ele, o garoto que eu beijei,
passou a gostar mais de mim
depois que eu alisei o cabelo.
lembro também que
quando a raiz do cabelo crescia,
ele vinha e apontava o dedo.
os pelos faciais gritando
e ele apontando o dedo,
as pernas cheias de pelos
e ele ria
mulher peluda,
costeleta feminina,
que engraçado!
nossa, que engraçado.
até pra cor do meu cotovelo
ele apontou o dedo
a cor do cotovelo
quem é que repara a cor de um cotovelo,
eu me pergunto.
foram uns oito meses nessa angústia,
até que, aos dezesseis anos,
ele me levou à casa dele
e esse não era o plano.
me levou pro quarto dele
e esse não era o plano.
eu disse que não queria
pois esse definitivamente não era o plano,
mas ele disse que queria, sim,
e daí que esse não era o plano?
foda é que a gente cresce achando que tá tudo bem,
pois a mulher existe para servir ao homem
e eu, com dezesseis anos, já sabia dessas leis patriarcais
sem nunca ter sequer ouvido falar em patriarcado
minha vingança, então, foi não sentir.
não sei bem por que,
mas até hoje não sinto.
seu rosto não me deixou marcas,
suas mãos me deram apatia.
lembro dele, sim, mas não o conheço mais
já não o conhecia naquela época.
aquilo é só uma memória falha,
uma coisa qualquer perdida na mente,
uma memória inútil igual a ele.
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INFÂNCIA
eu não sabia o que fazer com o meu cabelo
era só muito pente muita dor muita quebra
uma vez a professora teve que prender ele pra mim
porque eu não sabia fazer isso
e por muito tempo eu não sabia muito bem o que ele era, mas
eu sabia que não gostava dele
o porquê eu não sabia
teve uma vez em que
fui pra escola com um penteado novo
minha mãe quem fez
aqueles coquinhos fofos
que eu passei a odiar
acho que esse penteado vai ter um nome diferente no futuro
até branco vai usar
mas… eu ainda não sei o que é branco
não sei o que é preto
não sei quem eu sou
não sei de muita coisa
enfim
eu fui pra escola com os meus coquinhos
e teve muita gente dizendo
desde a porta de casa
teve muita gente dizendo nomes feios
dizendo nomes de marcas de palha de aço
gente rindo feio e olhando feio
e isso me ajudou a não querer
saber o que fazer com meu cabelo
então eu fiz o que eu sabia fazer
que era sentir o cheiro ruim do henê
queimar a orelha fazendo chapinha
e um pouco mais velha
usar alisante e ganhar casquinhas de feridas no couro cabeludo
o cabelo liso era uma alegria
tinha muito cheiro de queimado
mas era alegria sim
porque ele tinha balanço
teve um dia em que eu vi
a sandy ainda criança na minha tv
e pensei: por que o cabelo dela era assim
e o meu não
por muito tempo pensei no meu cabelo que eu não conhecia
que eu não sabia o que fazer
que eu não queria saber o que fazer
e ficava pensando comigo
por que eu não tenho o cabelo da sandy?
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PLURAL
as infinitas bocas
discursam sobre o discurso:
a voz do norte conversa com o timbre do sudeste
a gargalhada do nordeste brinca com o papo do centro-oeste
a língua dança enquanto expulsa
tudo o que adormece debaixo da escápula
tudo o que queima o estômago
tudo o que arde os olhos
tudo que inflama a garganta
as palavras se entrelaçam
e se tornam um novelo
de raivas choros risos e gozos
conversamos entre nós sobre
as letras da baixada fluminense
as sílabas do Recôncavo Baiano
as palavras da Baixada Santista
as frases de Guiné-Bissau
os textos de Cuba
os contos de Madagascar
nosso falar
nos traduz e será ouvido
e por mais que ruídos hegemônicos
tentem nos abafar,
ofuscamos o barulho
com nosso canto subversivo.
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