Um ensaio visual de Maria Lutterbach
Maria Lutterbach (1982) é de Belo Horizonte e vive no Rio de Janeiro, onde escreve e realiza projetos audiovisuais. Seu romance de estreia, “Baixo Araguaia”, será lançado em breve pela editora Quelônio (SP). O ensaio visual “e.lã” foi selecionado para a Mostra do Filme Livre de 2019.
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e.lã
A palavra “elã” sempre fez parte do meu léxico familiar. Confiava que “elã” dissesse respeito a elegância, garbo, refinamento. Porque era uma cara um pouco assim a que a minha vó fazia quando pronunciava o termo. “Fulana tem um elã”, repetia ela, enquanto trocava a água de um vaso de flores, ou colocava um sachê novo no armário de lençóis do corredor. A cara de vovó sempre foi para mim o significado preciso de “elã”, até o dia de hoje, quando resolvi buscar no dicionário sua definição oficial:
substantivo masculino
arremesso; calor; ardor; entusiasmo; impulso; arroubo; impulsão; força; furor: “o elã de um sentimento ardente”; alento; aptidão; capacidade; estrogênio; inspiração:
“escrever com elã”; vivacidade; calor; disposição; emoção; energia; entusiasmo; força; vigor.
Em vez de confirmar aquilo que eu já tinha como definitivo, me deparei com uma palavra nova e vibrante. “Elã”, afinal, nunca tivera qualquer relação com o requinte de louças e bicos de papagaio que decoravam as casas das mulheres da minha família. Pelo contrário. A palavra que eu antes traduzia livremente a partir dos gestos de vovó era um verbete quase rebelde, insurgente, que nada devia aos caprichos do nosso desbotado sobrenome suíço-alemão. Com a descoberta comecei a me perguntar se vovó, suas três irmãs e as doze filhas mulheres que elas tiveram teriam também escutado e repetido essa palavra pela vida como um engano. Talvez, aquele falso elã tivesse algo ver com um certo lugar no mundo que elas foram ensinadas a desejar. Um lugar de roupas bem cortadas e enamoramentos fantasiosos. Um lugar elegante, ordenado e sem riscos. Um lugar chamado “elã’, muito distante e protegido do entusiasmo, impulso e arrebatamento contidos na palavra original.
Assista ao ensaio visual pelo link: e.lã
Texto e edição: Maria Lutterbach
Trilha: Mario Cappi