memória #dois: me empresta uma memória? [parte 1] – Por Gabriele Rosa
no último dia de 2022 pendurei palavras no varal, no quintal da minha avó. enquanto observava o vento bater entre desejos, expurgos e sonhos-bebês, me vesti de memórias. entre lembrar e esquecer, rememorar e celebrar, percebi que a memória é a ancoragem dos meus experimentos, raiz na minha pesquisa acadêmica, nervura na minha poética. das miudezas aos delírios cotidianos. além de tatear o mundo, gosto muito de ouvir pessoas contando histórias. a voz exerce em mim um fascínio singular. posso não lembrar de um nome, titubear diante de um rosto talvez familiar, mas jamais esqueço uma voz.
para abrir os caminhos poéticos de 2023 e encantar os dias que virão com ações coletivas e amorosas, partilharei aqui [em duas partes ou mais] um experimento de fôlego, uma encruza de afetividades, uma convocatória.
me empresta uma memória? é a pergunta disparadora de um experimento colaborativo, performático, poético e afetivo. com o intuito de celebrar memórias, exercitar a escuta ativa, mergulhar nas miudezas cotidianas alheias e refabular realidades, o experimento propõe a troca de memórias entre desconhecidos [ou quase] e a criação de um material artístico inédito em qualquer linguagem ou suporte. convoquei gentes de afetos – que chamei de caminhantes – [artistas, professores, pesquisadores, amigos que admiro] por meio de uma carta-convite com a seguinte proposta:
- escolher um objeto de afeto e enviar uma foto dele;
- gravar um áudio de até 1 minuto narrando uma memória afetiva com o objeto escolhido; que chamei de memória base.
com os objetos e áudios recebidos, as memórias foram embaralhadas e redistribuídas de maneira anônima, simultânea e coletiva, uma mensagem de texto foi disparada aos caminhantes de forma individual [era o momento da boa fortuna ou sorte ou acaso agir sobre o experimento], como mediadora [também caminhante] nomeei cada memória base + objeto de afeto com uma palavra, assim garantiria o anonimato dos caminhantes. algumas palavras foram escolhidas por mais de uma pessoa, ficou com a palavra quem a convocou primeiro [ou teria a palavra convocado o caminhante?]. no meu caso, fiquei com a palavra que me encontrou por último. cada caminhante recebeu a memória emprestada (imagem do objeto + áudio da memória) também de maneira individual. portanto, eles só saberão quem está no experimento e quais memórias foram trocadas a partir desta partilha.
a seguir, as memórias, seus respectivos caminhantes e escolhas:
gosto de pensar que nossas palavras encontram os caminhos que desejam. e que sejam os melhores, sempre. e o destino ou a sorte ou a boa fortuna ou como queira chamar o acaso, age nas fendas de sentidos. nas distrações e vulnerabilidades, nos sorrisos involuntários de canto de boca. e assim, as palavras se olharam:
a seguir, partilho a primeira parte dos materiais artísticos inéditos produzidos pelos caminhantes, a partir das memórias emprestadas.
Eli Carrias (@eli.carrias)
Luciana [gruta]
Nenhum frio previsto lá fora
ardo sólida no calor de janeiro
vitrine embaçada olhos de nicotina
Retorno à casa de minha vó
o cachorrinho de vidro
me olha entre louças brancas copos
alegria de se saber intocável
Olho-o e minha boca
se tinge de Azul e Amarelo
um tempo em que as cores tinham nome
[Eleazar Venâncio Carrias é poeta. Seu livro “Máquina” (ed. Urutau) foi semifinalista do prêmio Oceanos 2022]
&
Graziela Brum (@grazielabrums_)
Rafael [sacerdotisa]
Guardar numa caixa de papel objetos aleatórios.
Uma caneta preta, um livro de poesia, uma moeda de outro país e a tua fotografia ao lado do teatro municipal.
Fechá-la por anos e depois perceber que seus afetos são outros, talvez misturados e que a memória pode nos enganar.
Talvez por isso o livro de poesia capaz de recriar os sentidos e trazer você para outra página, que não seja a do final.
[Graziela Brum é escritora, poeta e curadora da Residência Artística Campo de Heliantos.]
&
Beatriz Malcher (@malcher.beatriz)
Barbara [âncora]
[Beatriz Malcher é poeta, pesquisadora e professora de Teoria Literária.]
Gabriel Folena (@gbrlfln)
Euler [ímã]
Sereia,
Pessoas nos veem da calçada como quem está prestes a passar direto. Você também acha engraçado como elas precisam mais de nós para sair das próprias vitrines, do que nós delas? Nos compram com ares de consumo, mas sabem que no fundo esbarraram no destino. No mais, espero que sejas polida onde quer que estejas. Espero que tome banho de mar, seja tão abençoada quanto abençoas, e tão protegida quanto proteges. Que não duvidem por mais um dia do preço que vales. Faço votos de desconhecido com amor de parceiro, e espero que recebas. Se no pescoço ou no pulso, no bolso ou nos dedos, espero que te entendam — que recebam o afeto que parece, mas não vem, dos apegos. Quando não seguram as pontas, nós seguramos as contas, já que somos feitos delas. às vezes, somos feitos de conchas. Trago cruz, você cauda.
Com carinho,
de amuleto para amuleto
[Gabriel Folena escreve às vezes e acredita sempre]
&
Ester Gehlen (@_estergehlen)
Igor [janela]
[Ester Gehlen, artista que anda por aí inventando palavras, atuando gestos e gestando imagens.]
&
Sarah Munck (@saramunckv)
Graziela [lâmina]
Lâmina
às mulheres translúcidas
Perguntei à senhora do campo
o que faz com barro nas mãos:
afasto a embriaguez de dias menores
da terra
o ferro colorido
cultivo faces translúcidas
da rocha
lava púrpura
dissolvo o vinho metamórfico
Então, no estilhaçar das taças
como diagramas esmaltados
compreendi que a lâmina ardente
reveste o corpo da mulher invisível
Há de se encontrar plenamente abrasada
para enxergar além do corte.
[Sarah Munck é natural de Juiz de Fora, Minas Gerais. Escritora, professora e pesquisadora. Escreve poemas desde que aprendeu a ler e a escrever.]
&
Luciana de Bem (@ludebem)
[Luciana de Bem, atriz e dançarina amadora por amor às artes da cena.]
***
Continua…
P.S. as partilhas do experimento me empresta uma memória? seguirão nos próximos textos desta coluna. além dos materiais artísticos inéditos produzidos pelos caminhantes, contarei miudezas do processo, meus atravessamentos e algumas curiosidades e outros tantos “acasos”. fique atento, caminhe com as gentes de afetos. e se sentir a convocação, que as palavras se encantem e encontrem os caminhos que desejarem, e que se sejam os melhores.
me empresta uma memória?