“Minha carne ainda sonha” de José Danilo Rangel – Por Andri Carvão
“A coluna Traça de Livro:…impressões de leitura… com 28 textos publicados de 16 de março de 2022 a 31 de agosto de 2023, depois de ter cumprido o papel de apresentar minhas leituras, algumas delas inusitadas, de autoras e autores de diversas nacionalidades, cede lugar para a coluna Escambo Literário & outras trocas, onde compartilho as minhas impressões de leitura da produção de autoras e autores contemporâneos da literatura independente.
Vida longa à revista Ruído Manifesto e aos seus leitores!”.
Andri Carvão, formado em Letras pela Universidade de São Paulo, é autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva, O mundo gira até ficar jiraiya e A poesia invisível: 30 anos de poesia (1993-2023), dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e mantém a coluna de impressões de leitura na revista Ruído Manifesto desde março de 2022.
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Minha carne ainda sonha | José Danilo Rangel
José Danilo Rangel é um poeta cearense radicado em Porto Velho, Rondônia, há 30 anos, e isto diz muito sobre a sua atuação como poeta. Zé Danilo está aquém dos grandes centros urbanos, como bem cantou o tropicalista Tom Zé: “para lá do Pará”. Mas mesmo com tamanha distância física do fechado (e elitizado) círculo literário que, num primeiro momento, pode parecer um obstáculo para qualquer aspirante à artista, o poeta manipula a máquina – e muito bem por sinal –, essa ferramenta que já há algum tempo faz a diferença para a veiculação de toda e qualquer matéria: as redes sociais. Fazendo jus à máxima de Marshall McLuhan – “o meio é a mensagem” –, Zé Danilo domina a situação, mata no peito, dribla os adversários (ou melhor dizendo, as adversidades) e marca um gol de placa.
José Danilo Rangel usa e abusa das redes sociais tanto para divulgar a sua poesia como a de outros poetas Brasil afora. Também se dedica à produção de zines (tais como os últimos que chegaram: Um pouco mais que apenas eu, Papo de poeta, Prefiro vivo o coração, Epa, pera lá!: poemas que escrevi pra discordar e As moendas mais bonitas), publicações artesanais que comercializa e/ou distribui gratuitamente como material de divulgação. Além disso, edita a revista Zeh! e organiza antologias digitais dos poetas lidos durante as lives.
Pode-se afirmar que José Danilo Rangel não é apenas um poeta livresco ou de saraus. Ele é um poeta presencial e virtual, um poeta artesanal – um poeta do zeitgeist. Inspirado por sua musa Vanessa, ele não se furta a dedicar poemas a seus pares como em sua mais recente publicação, Minha carne ainda sonha (Letras e Versos, 2022), título que é verso do poeta paulista Wilson Guanais. Outros exemplos dessa manifestação através do poema-homenagem, encontramos na abertura do livro em Novíssima poética, paródia da Poética de Manuel Bandeira. “Estou farto do lirismo mentido, do lirismo falso iluminado (…). De todo lirismo que se sacrifica / pra agradar, (…) Abaixo todo esse lirismo coach! // Quero antes o lirismo dos poucos, / o lirismo dos que ainda resistem, / o lirismo heroico e passa fome, / o lirismo pungente e ignorado” Em seguida, Fernando Pessoa é alvo de sua artilharia poética quando o poeta espeta: “Até já conheci quem tivesse / levado porrada, mas todos os / meus conhecidos têm sido / resilientes em tudo…” (em Poema fora de linha). E em Manoel de Barros, só para ficar em mais um caso: “se é verdade que escurecer acende vaga-lumes”.
Mas nem só de homenagens vive a poesia de JDR. Crítico contumaz das plataformas digitais onde milita poeticamente, o poeta confronta o “lirismo fofo com cheiro de pelúcia / e infantilidade / vendido nas redes sociais” (…), esse “lirismo caçador de like”. O poeta não parece se abalar com a falta de adesão e engajamento de seu público angariado à conta-gotas, principalmente através da sua Live de Quinta, e em eventos ao ar livre, como o Poesia Grátis, por ex., que apresenta em espaços públicos de sua cidade. É bem isso, Zé Danilo: a literatura é um nicho dentro da cultura brasileira e, dentro desse nicho, a poesia, esse gênero tão elevado e ao mesmo tempo tão desprestigiado, ocupa um espaço ainda mais ínfimo. Não sei, só sei que foi assim.
José Danilo Rangel é um poeta inquieto, consciente do baixo número de leitores potenciais, não só de sua poesia como do gênero de modo geral. Afinal, como publicado em vários jornais recentemente “84% da população adulta do Brasil não comprou nenhum livro no último ano” (2023). Mas mesmo assim, Zé Danilo não se faz de rogado, pois ele é a personificação de seu próprio estro lírico. Como o homem-placa que anuncia a venda de ouro, o poeta JDR tira pombos e coelhos da cartola e areia da algibeira para assoprar nos olhos dos incautos: agarra o seu público-leitor na rua a unha. O poeta do nosso tempo disputa espaço com uma infinidade de distrações imagéticas e midiáticas. Por isso, precisa ter o ímpeto (a cara de pau) e, munido de microfone (ou de um megafone como o nosso Rubens Jardim) espalhar poesia aos quatro ventos. Poeta com os pés no chão. Microfone no pedestal. Câmera do celular. Boca no mundo. Alerta geral: Poesia Grátis!
Nesse ponto, eu estou contigo e não abro, meu amigo Zé Danilo: poeta que é poeta tem que ser o camelô de sua própria obra e ainda reservar espaço para a generosidade com seus pares, com seus parças. Zé Danilo se recusa a ser recluso, blasé, antissocial, fechado no escritório, em seu quarto ou dentro de si, amarelando junto a livros velhos de sua biblioteca pessoal. Zé Danilo extrapola os caminhos, abre portas e janelas onde só há vãos e frestas; se encontra muros e paredes, escala ou simplesmente derruba e pronto. Zé Danilo é um guerreiro da palavra, expansivo, articulado, um comunicador-nato; e se não é convidado como apresentador de programa de TV ou de rádio, ele abre o seu próprio canal de comunicação seja onde for. O poeta usa a palavra através da poesia, porque sente a necessidade dessa troca de experiências. Talvez ele preferisse dizer: para trocar uma ideia. Via de mão dupla, Zé Danilo é receptor e emissor no diálogo poético. Parece que foi Nietzsche quem afirmou que para ser um bom poeta é preciso ser um bom filósofo e vice-versa. E essa dinâmica é muito presente tanto na poesia de Zé Danilo quanto em sua fala. Prova disso, é uma escrita carregada pelas marcas da oralidade: “aff”, “né”, “taí”, “chega dói”.
José Danilo Rangel parece não dar um passo sem empunhar a chama lírica. O poeta se retroalimenta da poesia de seus contemporâneos, sem distinção, pois é um poeta da trans-missão da palavra, da irradiação, da reverberação. Zé Danilo não se tranca – escancara-se.
Com a palavra, o poeta:
1. Qual é o papel da poesia?
“De modo geral, uma boa poesia tem o poder de trazer pra fora ou de levar pra dentro o que, por outro meio, não transitaria. Eu mesmo que disse. Tem um tempo já. Mas continuo acreditando que a poesia é a única forma de fazer transitar certos conteúdos. Pensando de modo mais específico e contextual, apenas na minha poesia, tenho me utilizado dos versos para combater o mal que é o discurso coach, questionando ideias como “se não é benção é lição”, “não desista nunca” e “trabalhe enquanto eles dormem”. Acho que é isso, pensar no papel da poesia é pensar nela primeiro como veículo, um carro de mudança, depois, no que a gente tem pra ser transportado. E pra onde, né?”
2. Quando vejo a sua atuação frente a divulgação da poesia, da sua poesia, da poesia dos amigos e do culto a esse gênero tão desprestigiado no nosso país, me vem sempre à mente o livro Preconceito linguístico do linguista Marcos Bagno. Você é um dos poucos poetas, senão o único, que valoriza a expressão poética pelo simples fato de ser transmitida escrita ou oralmente, através de vídeos, por ex., sem julgamento de valor. Esse esforço em garimpar o poético no poema mais rasteiro é prova de respeito pela construção/desconstrução do outro. Você vê o outro poeta como um espelho de si mesmo?
“O que não pode faltar em um poeta? Eu perguntei uma vez, no formulário de envio de poemas da live que faço, a Leitura de Quinta. Nosso amigo, Wilson Guanais respondeu que saber, saber que não vale nada. Ou algo por aí, sobre o desvalor da poesia e de quem inventa mexer com versos. E a verdade é essa: ninguém tá nem aí pra poesia. Percebo isso, vivo isso. Aqui em Porto Velho não temos exatamente um circuito literário, os espaços de convívio são repletos de pessoas que durante muito tempo não queriam me dar o título de poeta, me chamavam assim para tirar sarro. E ainda vou inventar motivos pra me afastar de quem também está tentando? Prefiro que a gente se una e se fortaleça enquanto grupo, afinal, estamos todos metidos com a mesma coisa: poesia. Quanto a ver, eu vejo os outros e outras poetas como companheiros de busca. Embora a poesia seja muita coisa e cada um tenha a sua própria forma de produzi-la, buscá-la e tudo mais, nossas pautas se comunicam, acreditamos no poder da poesia, acreditamos que o mundo precisa de poesia.”
É isso, Zé Danilo!
RANGEL, José Danilo, Minha carne ainda sonha, 111 p., Rio de Janeiro, RJ : ed. Letras e Versos, 2022.
Edvaldo rosa
MUITO bom este texto!
Parabéns ao articulista.
Edvaldo rosa
JOSÉ DANILO RANGEL, prazer em CONHECÊ-LO, temos algo em comum…