“Nada de Novo no Front” (2022) – Por Wuldson Marcelo
É tempo do prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.! Como todo ano, a premiação, também conhecida como Oscar, supostamente indica e condecora os melhores filmes, atuações e trabalhos técnicos da temporada. Um propósito no qual falha, às vezes de modo ofensivo para os amantes da sétima arte, desde 1929. O que ocasiona decepções e polêmicas, aumentando seus detratores. Oscar, afinal, é honraria da indústria e não reconhecimento artístico. Por outro lado, o troféu tem seus admiradores, que se sentem representados pelas escolhas da Academia e até promovem bolões. Mesmo críticos de cinema têm esse hábito.
Independentemente do amor, da repulsa ou da indiferença, o “The Oscar goes to…” segue cativando e movendo cinéfilos, confirmando o lugar da festa hollywoodiana como a maior cerimônia de premiação de cinema que existe no mundo (cuja audiência diminui ano após ano).
Como amamos cinema (e assumindo as incoerências da vida), convidamos escritores, críticos e estudantes de audiovisual para escreverem sobre alguma das 10 produções indicadas à categoria principal: a de melhor filme.
Nada de Novo no Front, o grande vencedor do Bafta 2023, é a perspectiva alemã para o livro seminal do escritor Erich Maria Remarque, lançado em 1929. Concorrendo ao Oscar de Melhor Filme e favorito em várias categorias técnicas, a produção germânica é analisada pelo nosso editor Wuldson Marcelo.
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Nada de Novo no Front. Direção: Edward Berger. País de Origem: Alemanha, 2022.
O romance Nada de Novo no Front (1928) de Erich Maria Remarque é um libelo antibélico, um clássico da literatura e um dos livros alemães mais vendidos no mundo. Em 1930, a obra de Remarque chegou a Hollywood em uma adaptação dirigida pelo renomado Lewis Milestone. O sucesso foi estrondoso entre crítica e público, além de ser laureado com o Oscar de melhor filme e direção na cerimônia de 1931.
Estranhamente, o romance, em seus 93 anos, não havia sido levado ao cinema em uma produção de origem alemã, e coube a Edward Berger esse feito, entregando a visão de um germânico sobre as atrocidades e desumanização sofridas pelos soldados no campo de batalha durante a Primeira Grande Guerra Mundial e os meandros políticos que os condenam a morte, desvelando o absurdo da guerra.
A experiência da guerra recebe de Remarque um tratamento pacifista, inaugurando, de certa forma, um olhar antiguerra para os conflitos armados e seu poder de destruição. Por isso, a partir do ponto de vista humanista estabelecido na literatura ocidental, a questão que se ergue é a seguinte: como traduzir uma obra antibelicista em imagens sem recorrer à violência gráfica ao retratar algo tão brutal quanto uma guerra?
O cinema produziu centenas de obras de cunho pacifista (A Grande Ilusão [1937] Glória Feita de Sangue [1957] e Feliz Natal [2005] ou que denunciam a guerra como algo cruel apelando para visceralidade (Agonia e Glória [1980] e A Irmandade da Guerra [2004]), na mesma medida em que concebeu filmes em que o espírito patriótico é exaltado (Iwo Jima – O Portal da Glória [1947]) ou com a mensagem de que “ninguém fica para trás”, uma pretensa afirmação da ligação emocional, humana entre os soldados, porém ocultando seu discurso favorável a um suposto conflito justo, o que confere a essas películas o seu verniz nacionalista (Falcão Negro em Perigo [2001] e Até o Último Homem [2016].
Pelo que pode ser evidenciado na pequena lista acima, os melhores filmes de guerra são aqueles que se posicionam contrários à sua existência. É dessa oposição que nasce a sua força e perenidade. Podem ser acrescentadas à lista mais duas obras primas: Apocalipse Now (1979) e Além da Linha Vermelha (1998).
A produção da Netflix, Nada de Novo no Front (2022), vencedor de sete prêmios Bafta, incluindo melhor filme e direção, para Edward Berger, navega nas águas perigosas de denunciar o terror da guerra enquanto o mostra em detalhes. Evidentemente, a obra de Berger se rende à violência gráfica e ao sofrimento extremo. Porém, volta-se para a questão nevrálgica, como mergulhar no horror sem entregá-lo em explosões, carne perfurada, triturada ou queimada e sangue? Berger usa cada momento para nos mostrar que, para além da morte terrível no front, a propaganda patriótica que sustenta a guerra ludibria os jovens por intermédio dos pormenores que edificam os grandiloquentes discursos do amor ao país e do heroísmo e cada cena descontrói esses discursos em um movimento de apresentar e descortinar as mentiras e a autoilusão que convencem e sentenciam garotos a matar ou morrer em nome da nação e de um triunfo pessoal mitigado pelo dever coletivo.
Logo no início, uma grande batalha, com muito, mais muito sangue, leva à morte uma personagem que parece ser o protagonista, mas o findar de sua vida nos leva a jornada de seu uniforme, entre vários outros, sendo reciclado para servir a outro jovem conduzido à guerra, Paul Bäumer (o estreante Felix Kammerer), que, junto a alguns amigos ansiosos, quase em êxtase patriótico, alista-se como se partisse para uma emocionante aventura.
Não demora muito para que o horror de um conflito armado mostre a sua verdadeira faceta para Paul e seus amigos, justamente com a morte de um deles no primeiro dia. Nas trincheiras no nordeste da França, os soldados encontram a violência desmedida, a fome, a angústia e um fio de esperança de que todo aquele pesadelo real encontre o seu fim.
Há alguns passagens descontraídas ou de companheirismo, como o roubo de um ganso e a divisão da carne da ave com os amigos famintos, a conversa sobre o que a vida pode oferecer a cada um quando a guerra acabar. Contudo, são alívios para a miséria e os efeitos devastadores das batalhas: lama, baionetas, metralhadoras, granadas, lança-chamas e tanques. Após a inteligente exposição inicial que denuncia o engodo do dever e a fabricação da emoção do combate, restam muito sangue derramado e o sentimento de derrota.
Toda a matança naturalista que toma conta de Nada de Novo no Front carece de um desenvolvimento das personagens, pois não conhecemos suas vidas pregressas, suas relações e nem suas opiniões sobre a guerra, somente os seus medos, estampados em rostos cobertos de lama, ou no automatismo, incompreensão e desespero de serem jogados no olho de furacão por ordens superiores. Ainda que seja evidente a escolha de se concentrar nos temores e na brutalidade da guerra, falta uma dose de emoção, de apego as trajetórias ceifadas pela tecnologia bélica.
Além de Paul, apenas Stanislaus “Kat” Katczinsky (Albrecht Schuch, em excelente atuação) tem tempo de tela para ser retrato como um indivíduo e não tão somente como um corpo a ser abatido ou massacrado. Kat tem família, profissão, tem personalidade e tempo de trincheira.
Há duas histórias paralelas que pertencem as searas da diplomacia política e do discurso da guerra como honra. Membros do alto escalão do governo alemão negociam o cessar fogo, a paz com representantes franceses. O líder do lado germânico é Matthias Erzberger (o consagrado Daniel Brühl), que defende o término das hostilidades entre os países a qualquer custo, já que não há honra que compense a carnificina. Para isso, precisa aceitar os termos de rendição que, para o orgulho germânico, é se submeter à humilhação. Já no jantar de um general com um major, temos o oposto desse quadro, a defesa da nobreza da guerra, da sua importância e existência. Nela, até o direito hereditário à alta patente é invocado. Morrer na guerra é uma glória, mesmo que o general somente envie seus subordinados para a inevitável chacina.
As três tramas são conduzidas com certo desequilíbrio, o que obriga Nada de Novo no Front a carregar uma intensidade, franqueza brutal ao representar a tragédia atroz que é a guerra a partir das trincheiras e pecar em manter lenta sua cadência na narrativa dos bastidores políticos e demais cenas fora do front de batalha.
Quanto a sua parte técnica, Nada de Novo Front apresenta uma sonoplastia que oferece uma verdadeira experiência auditiva, enquanto a trilha sonora de Volker Bertelmann, com o uso engenhoso de sintetizadores, é atmosférica e cria momentos de expectativa e tensão. Já a fotografia de James Friend joga com a contradição da beleza das florestas, da vastidão dos campos e do céu, de um mundo que se torna cada vez mais acinzentado e a agonia de rostos agoniados e agonizantes.
Nada de Novo Front conta com um roteiro pouco envolvente no que tange à construção de quem são as vidas desperdiçadas e despojadas de seu passado e sonhos, não nos permitindo conhecê-las, para reconhecê-las e lamentá-las, mantendo tudo muito impessoal. Ademais, flerta perigosamente com o exibicionismo e o fetiche da violência, mesmo que haja uma razão em sua ênfase e na visualidade do caos intolerável que é a guerra.
No final, temos a mensagem que a guerra é um inferno, com várias referências a filmes sobre a belicosidade, barbárie e incompreensão do horror das lutas armadas, porém, o fascínio pelo horror supera a aguçada e densa crítica à existência da guerra.
Pecando pela ausência de mecanismos que gerem empatia, ou melhor, por não engendrar em sua lógica interna empatia pelas personagens (obviamente, as agruras pelas quais os soldados passam e as ações infames as quais são submetidos nos despertam aversão àquela mortandade), e pelo excesso de vísceras, Nada de Novo Front oferece pouco da profundidade que marca Glória Feita de Sangue, de Stanley Kubrick, e sem a exploração sentimental, o lirismo e a crueza do russo Vá e Veja (1985), de Elem Klimov, duas das referências que mais saltam aos olhos nesta produção alemã que não alcança o mérito de ser a obra cinematográfica definitiva da obra prima literária de Erich Maria Remarque.
Onde assistir: Netflix