Não precisamos que nos digam como pensar – Por Vinícius da Silva
No laboratório do tempo, coluna assinada por Vinícius da Silva, as coisas não são o que realmente são (ou que pensamos ser); os sonhos deixam de ser sonhos e passam a ser partes da vida. Nesta coluna, quinzenalmente, Vinícius escreverá a partir da interface entre artes visuais, filosofia e literatura, buscando realizar isto que o escritor chama de “experimentos” (ora textos ensaísticos, ora poemas longos) sobre tempo, esquecimento, futuro, e outros experimentos possíveis para o laboratório do tempo. Nesses encontros, Vinícius mais suscitará questões do que tentará respondê-las, pois é dessa forma que o pensamento atinge o seu nível ótimo de curiosidade para conhecer e acessar as coisas. No entanto, o laboratório do tempo nos desafia a esquecer de tudo, menos de quem somos ou de nossos simulacros; você aceita o desafio?
Vinícius da Silva. Graduando em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2020, da Silva apresenta o Podcast Outro Amanhã, ministra cursos livres sobre o pensamento de bell hooks, Teoria Queer, entre outros temas de pesquisa, e é revisor e atua no setor de Pesquisa Qualitativa da ONG TODXS. Possui experiência e interesse de pesquisa nas seguintes áreas: Filosofia Política, Teoria Queer, Arte Contemporânea, Poéticas Visuais, Teoria Feminista Negra e Artes Plásticas. Site: https://www.viniciuxdasilva.com.br/
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Não precisamos que nos digam como pensar
Quando olho para trás, lembro-me de ser um jovem de 17 anos escrevendo um texto chamado “Quantas vítimas o epistemicídio fez hoje?” que buscava, através de uma escrita raivosa (algo que, ainda bem, se preserva até hoje), denunciar as práticas de epistemicídio que organizaram e continuam a organizar os modos pelos quais podemos produzir conhecimento e ter esse conhecimento validado. Desde cedo, a questão do conhecimento me deixa inquieto, pois, a princípio, é um tanto difícil (ou não) reconhecer que o conhecimento também é atravessado pela lógica da obliteração operante nos mecanismos de violência racial.
Nesse sentido, a pergunta inicial para mim era: por que há certas pessoas que simplesmente não podem produzir conhecimento? E o verbo “poder” é importante nesse caso, pois “poder” não designa apenas o ato de produzir conhecimento, mas também descreve as relações de validação. Como bem nos ensina Patricia Hill Collins, a Epistemologia é uma relação de poder. E uma relação de poder assimétrica, acima de tudo.
Historicamente, para a consolidação do projeto moderno, foi preciso haver uma organização específica do conhecimento, a partir do ocidente, que se baseava na lógica da obliteração, portanto, do epistemicídio. Com isso, quero dizer que os pilares da filosofia moderna e todo o seu projeto se baseiam na lógica da obliteração. Ao analisar textos e categorias de Descartes, Kant, Hegel e Voltaire (não necessariamente nessa ordem), por exemplo, observamos, para além do sempre mencionado brilhantismo de seus edifícios, também formas específicas de construir um projeto de Mundo que se baseia na lógica colonial.
Por isso, já aos meus 17 anos, eu saberia que a resposta à pergunta “quantas vítimas o epistemicídio fez hoje?” não existia, pois é impossível mensurar e quantificar a obliteração racial que ocorre nas dinâmicas de produção de conhecimento. A modernidade, em todo o seu projeto de universalização e transparência do sujeito e da razão, produz armadilhas. Uma dessas armadilhas é o estabelecimento de paradigmas eurocêntricos de validação de conhecimento. A falácia do rigor científico, por exemplo, se insere nessa dinâmica a partir da determinação de um padrão de razão.
Em “Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana”, o filósofo sul-africano Mogobe Ramose já nos alertava sobre os perigos da pretensão de transparência do pensamento ocidental. Se não pode haver filosofia africana, dirá Ramose, também não pode haver filosofia ocidental, pois a particularidade é um ponto de partida válido para a filosofia. Essa contradição do pensamento moderno persiste ainda hoje, quando insistem em nos ensinar a ler quem nos trouxe até aqui, como Beatriz Nascimento, Xica Manicongo, Sueli Carneiro, Megg Rayara, para citar algumas das autoras que formam também um pensamento brasileiro, uma filosofia brasileira.
Ao falar sobre isso, sempre menciono a categoria da incomensurabilidade, presente na filosofia da ciência contemporânea, a fim de descrever o processo por meio do qual torna-se um pouco mais difícil a relação entre duas categorias diferentes, pois elas se constituem a partir de paradigmas e contextos também distintos. A incomensurabilidade não é, no entanto, uma barreira para a produção de conhecimento, mas sim uma maneira de descrever projetos diferentes.
Cito um exemplo: Judith Butler e bell hooks pensam o sujeito de maneiras similares, enquanto um sujeito que se constitui no discurso, nas palavras. No entanto, como me orienta o querido Uã Flor do Nascimento, ao passo que Butler, e a tradição por ela mobilizada, está interessada nos aparatos de sujeição e na sua crítica, hooks e grande parte da tradição radical negra se preocupa com a zona do não-ser, ao pensar que pessoas negras sequer são consideradas sujeitos políticos. A relação entre elas é livre, faz quem quer, mas que saibamos analisar os contextos de produção, para compreender que o conhecimento se produz a partir de diferentes experiências e afetos, algo que será rejeitado pela formulação cartesiana e kantiana.
Recentemente, quando me deparei com uma situação na qual uma pessoa trazia à conversa o pensamento do austríaco Ludwig Wittgenstein para aparentemente (e posso ter entendido errado) discordar do que Linn da Quebrada falava sobre seu processo criativo da produção de Trava Línguas, a partir da lógica do quilombo e do pensamento travesti, me fiz a seguinte pergunta: até quando precisaremos que nos ensinem o pensamento europeu para intermediar nossas relações, processos e construções coletivas? Quais são os limites da universalização da razão?
Como de costume, não respondo às perguntas que gosto de colocar, mas resta-me sempre o imensurável desejo de que não mais sejamos obliteradas por uma lógica cisheterocolonial, que unidimensionaliza e universaliza as categorias do pensamento. Retomando Collins: se a Epistemologia implica numa relação de poder, é preciso que criemos nossas próprias validações e mecanismos de autodefinição. Afinal, somos imensas e muito maiores que o Mundo. Justamente por isso precisamos destruir o projeto moderno. Até lá, continuaremos pensando a toque de atabaques e no meio dos escombros de um Mundo que já começa a ruir.