Negritude e Representação – Por Maria Clara Bertúlio
A Coluna “Poéticas & Resistência” é reservada à atriz-poeta-diretora-apresentadora Maria Clara Bertúlio, que divulga e analisa a Literatura Negra e as Afro-poéticas contemporâneas, trazendo leituras e reflexões a partir de uma abordagem crítica dos campos de representação de imagem, especialmente em se tratando dos signos da negritude.
A coluna vai ao ar sempre no terceiro sábado de cada mês.
* Maria Clara Bertúlio é atriz-poeta-diretora-apresentadora cuiabana, graduada em Teatro com habilitação em Direção pela UNEMAT, tendo desenvolvido parte dos seus estudos em Artes Cênicas na Universidade Estadual do Paraná/FAP, em Curitiba. Graduanda em Letras na UFMT, articula sua pesquisa voltada para a Literatura Negra e dedica-se a processos experimentais entre as linguagens do teatro, da poesia e da performance, exercendo também atividades no audiovisual. É integrante do Coletivo Negro Universitário UFMT e estreou como apresentadora no programa “Palavra Literária”, da TV Assembleia Legislativa de Mato Grosso, em 2022. Desenvolve trabalho individual e em coletivo com bonecas híbridas; dirigiu o espetáculo de Teatro Negro Contos, Itans e Fábulas de Escrevivencias (2022), aprovado pela Lei Aldir Blanc; compõe o Selo Itan de Literatura Negra Independente em Mato Grosso (2ª edição) e teve alguns poemas publicados na coletânea Slam Xero de Xita (2022), que reúne a produção de 15 poetas ligadas à cena do hip hop feminino em MT.
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Negritude e Representação
Fiquei muito feliz em ser convidada para contribuir escrevendo nesta coluna sobre Literatura Negra na Ruído Manifesto. Com poucos anos de existência, esse projeto de fruição literária, germinado aqui em Mato Grosso, já possui um acúmulo significativo e qualificado de produção, expandindo-se para outras regiões e territórios culturais. Uma das características marcantes da Ruído Manifesto é a criatividade de aglutinar diferentes manifestações poéticas da contemporaneidade, incorporando linguagens que transitam da literatura e do cinema até as artes visuais, e além.
Minha contribuição irá se centrar no segmento da Literatura Negra e das Afro-poéticas contemporâneas, trazendo leituras e reflexões a partir de uma abordagem crítica dos campos de representação de imagem, especialmente em se tratando dos signos da negritude.
Em suma, quero falar sobre as escritas negras e sua herança vernacular que remonta a Domingos Caldas Barbosa, em pleno século XVIII, à Maria Firmina dos Reis, em São Luís do Maranhão, escrevendo o primeiro romance afro-brasileiro, no ano de 1859. Há uma contribuição expressiva desse segmento da população, que a história da colonização política e cultural não permitiu que fosse colocada em evidência, lacuna que reflete muito bem as relações raciais existentes em nossa sociedade.
Nesse cenário, persiste ainda uma contenda em relação ao reconhecimento da Literatura Negra enquanto campo específico de produção literária, especialmente nos contextos institucionais. Por isso, há uma relação conflituosa entre tal vertente e os cânones, na medida em que ela denuncia e evidencia silenciamentos históricos, apontando a exclusão e o racismo como fatores determinantes dessas diferenças.
Assim, a Literatura Negra questiona a lacuna em relação à presença do negro na historiografia literária oficial ou “canônica”. Isso se deve à dificuldade de inserção desse segmento da população no mercado editorial, bem como o acesso aos bens culturais e o reconhecimento nos espaços formais da produção de conhecimento.
O pesquisador Eduardo de Assis Duarte (2008) afirma que “essa literatura não só existe como se faz presente nos tempos e espaços históricos da nossa constituição enquanto povo; não só existe como é múltipla e diversa”. Assim, há que se considerar a diversidade de manifestações e expressões que esse segmento abarca, valendo-se tanto da escrita como da oralidade.
As manifestações culturais, como o cinema, o teatro, a literatura dentre outras esferas institucionalizadas da produção de imagens, desenharam o perfil dos africanos e afrodescendentes à luz de estereótipos marcadamente racistas e nocivos para o povo negro. Nesse contexto, cria-se um imaginário social povoado por fantasmas e violências que reforça a hegemonia dos sujeitos brancos e naturaliza a condição de subalternidade dos corpos negros.
Dessa forma, nessas esferas de representação, a construção dessas imagens, de acordo com hooks (2019a), trabalha dentro das restrições de uma estética racista, subordinada a um campo de visão unicamente determinado pela condição de dominação. São criados e/ou criadas, prostitutas, mães negras, personagens marginalizadas e outras figuras objetificadas e marcadas pelo estigma de uma visão negativa e unidimensional da experiência negra.
Todavia, há, na literatura contemporânea, produções literárias cuja assinatura autoral faz ecoar as vozes deixadas à margem, contrapondo-se às representações literárias hegemônicas e indo de encontro ao cânone literário. É o caso das obras de autoras como Conceição Evaristo, Paulina Chiziane, Miriam Alves, Elisa Lucinda, Luciene Carvalho; além de movimentos como o Quilombhoje com os Cadernos Negros, o movimento SLAM e o Selo Itan de Literatura Negra Independente, aqui em Mato Grosso.
Enfim, esse movimento configura um ato de autorrecuperação e afirmação identitária, em que o indivíduo, nas palavras de hooks (2019b), luta para recuperar a si mesmo, reescrever, renovar, movendo-se de objeto para sujeito de suas próprias histórias. Nesse sentido, a Literatura Negra insere-se no campo da disputa de narrativas em espaços de exclusão, contra o permanente perigo da “história única”, como alerta Chimamanda Ngozi Adichie (2019).
Trata-se de uma vertente que trabalha na construção de outras ordens de representação, justas e que melhor interprete a nossa diversidade. Tais apontamentos indicam a adoção de outros olhares na luta contínua pela transformação dos modos de ver e narrar as realidades do povo negro, recriando novas estéticas, ressignificando e ampliando o próprio conceito do que pode ser literatura.
DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 31. Brasília, jan-jun de 2008, pp. 11-23. Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/2017 Acesso em: 05 de jun. de 2022.
hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra / Bell Hooks; tradução de Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019a.
hooks, bell. Olhares negros: raça e representação / Bell Hooks; tradução de Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019b.
NGOZI, Chimamanda. O perigo de uma história única. TED, 6 de out. 2019. Disponível em<https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt >. Acesso em 03 de set. 2022.
(Arte da capa por Tales Rocco).
Waldir Bertúlio
Identitarismo Fantástico , consequente , coerente e qualificado avanço na PROJECTAÇÃO da afirmação negritude nos Contextos , infelizmente do ” racismo cordial ” , no contraponto de Re _ Afirmação DESTA bela e lutadora ” negrícia em riste ” BRASILEIRA …. Salve !!!