Ninguém é branco no Brasil parte II ou Transição capilar – Por Sílvia Barros
TRAVESSIA é coluna reservada a poeta de mão cheia, Sílvia Barros. A periodicidade é quinzenal, preferencialmente às terças-feiras, mas isso não é regra, só os 15 dias. O objetivo do espaço é jogar luz sobre as intercessões presentes na relação entre conhecimento acadêmico e saber ancestral. Boa leitura!
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O ano é 2021 e ainda precisamos falar sobre cabelo? Não deveríamos. Mas acontece que algumas coisas demoram anos para fazer a travessia do seu significado. E acontece também que eu nunca passei pela transição capilar. Em 2007, não se falava em transição, as discussões sobre empoderamento estético não eram populares e meus cabelos eram “relaxados”. Mas o estresse da escrita da dissertação de mestrado e a necessidade de praticidade na rotina me fizeram questionar a necessidade de ter um cabelo longo, se o cabelo curto seria tão mais simples e mais saudável (afinal, as químicas relaxantes estavam nos meus fios desde os oito anos de idade). Cortei, não houve traumas, não houve choro nem apego. Houve quem estranhasse, houve quem elogiasse, mas, para mim, naquele momento se tratava apenas de um corte de cabelo.
Mesmo não querendo afirmar nada com aquela atitude, senti um mundo mudando ao meu redor. Fui parada na rua para me perguntarem como eu fiz para deixar meu cabelo daquele jeito, ouvi alunas dizendo que queriam ter coragem para fazer o mesmo e uma que disse para toda a turma: “a professora usa o cabelo dela natural na maior cara de pau!”. Não era apenas um corte de cabelo, aquilo foi um início inconsciente da minha busca por me educar para oferecer melhores informações sobre as relações raciais com as quais nos envolvemos em todos os âmbitos da vida.
Anos depois dessa transição involuntária, os produtos para cachos e crespos começaram a se popularizar e o processo de transição capilar se tornou uma experiência compartilhada por muitas mulheres negras e por homens negros. Parecia uma celebração, parecia que a fase mais difícil já tinha passado. Mas, por trás da discussão estética e do amor próprio, existe o racismo. E quando existe racismo existe ridicularização, piada e deboche. E quando o racismo é colocado em jogo, no Brasil, ninguém mais é branco. Todo mundo saca a carta da herança genética ou mostra o leve ondulado do cabelo e até um cachinho tímido para dizer que também tem “esse defeito”, que não foi por maldade, que precisa aprender.
Uns dias atrás me revoltei contra Angela Davis. Na verdade, não contra Davis, mas contra a célebre frase dita por ela: “não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Formulo melhor: me revoltei contra a repetição banalizadora dessa frase. Angela Davis disse essa e muitas outras frases – criou discursos, ensaios, livros! – que devem ser incluídas nos nossos estudos e momentos de reflexões, mas parece que as pessoas precisam de deuses e deusas cujos ensinamentos formulados como frases de efeito devem ser repetidos à exaustão, transformados em mantra, oração e, consequentemente, em milagre. A devoção a uma pensadora do feminismo negro não vai curar o racismo.
Quando Reni Eddo-Lodge escreve um livro chamado Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça, ela está expressando uma frustração enorme em relação ao gasto de tempo e energia que pessoas negras empregam estudando, pesquisando e elaborando conceitos para explicar aos não-negros questões sérias que envolvem a todos nós. Essa frustração é a mesma expressa pela participante do famoso reality show ou pela estudante que reivindica uma bibliografia menos centrada na Europa junto a seus professores.
Viver essa frustração causa descrença em relação ao antirracismo proclamado por aí e à suposta empatia que só existe quando não atrapalha planos de vida, momentos de relaxamento e crenças arraigadas, ou seja, novamente nos vemos à espera de um milagre. Muitas vezes a vontade é apenas educar crianças negras para a autodefesa. Mas quão pesado é colocar essa responsabilidade só de um lado da história? Não foi sempre dessa forma injusta que nossas relações se estabeleceram?
A vontade real é falar sobre esse assunto pela última vez. E depois só falar de poesia. E amor. E sobre criar futuros possíveis. Mas quando a realidade acorda o sonho sabemos que não será a última conversa e que, mais uma vez, precisaremos acreditar que existem aliados em algum lugar e que algumas leituras… quem sabe Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil, de Sueli Carneiro; Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade ou Olhares negros: raça e representação, de bell hooks; ou o best seller da última Flip presencial, Memórias da plantação, de Grada Kilomba ou o importante Racismo recreativo de Adilson Moreira… possam auxiliar no aprofundamento da questão e na criação de estratégias de ação. Queremos acreditar que além da leitura haverá escuta, e além da escuta haverá mudança, e além da mudança haverá libertação. Tudo isso escrito assim, no futuro, olhando a ponta da estrada longa pela qual caminharemos.