Nojo, uma porrada que todo mundo devia ler, ou a literatura do soco ou das entranhas em Divanize Carbonieri – Por Luiz Otávio Oliani
Luiz Otávio Oliani cursou Letras e Direto. É professor e escritor. Em 2017, a convite de Mariza Sorriso, representou o Brasil no IV EPLP em Lisboa. Participa de mais de 200 livros coletivos. Consta em mais de 600 jornais, revistas e alternativos. Recebeu mais de 100 prêmios. Teve textos traduzidos para inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, holandês e chinês. Publicou 16 livros: 10 de poemas, 3 peças de teatro e os livros de contos A vida sem disfarces, Prêmio Nelson Rodrigues, UBE/RJ (Personal, 2019); Ingênuos, Pueris e Tolinhos (Personal, 2021) e Um encontro inusitado: concordâncias e divergências, em parceria com Eliana Calixto (Penalux, 2021). Recebeu o título de “Melhor Autor Apperjiano 2019” pelo conjunto da obra. Em 2020, teve um poema publicado nos Estados Unidos da América, na Carolina do Norte, em Chapel Hill, na coletânea internacional VII Heron Clan, a convite de Todd Irwin Marshall. Em 11 de junho de 2021, a professora doutora Cristiane Tolomei (UFMA) resenhou A vida sem disfarces e Ingênuos, Pueris e Tolinhos, no canal A VOZ LITERÁRIA.
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Nojo, uma porrada que todo mundo devia ler, ou a literatura do soco ou das entranhas em Divanize Carbonieri
“a sociedade é preconceito é preconceito é racismo é racismo mas o mundo é assim e você….” p. 69
Divanize Carbonieri
A capa do livro Nojo de Divanize Carbonieri, 1ª edição, Cuiabá, MT, Carlini & Caniato Editorial, 2020, traz a silhueta do corpo feminino. Nada que cause susto ao leitor.
Nojo é um livraço. Obra antológica, gol de placa na literatura brasileira contemporânea. Eis um volume que realmente diz a que veio. Texto elaborado para impactar, deixar o leitor perplexo, e isto acontece de forma magistral.
E uma característica que permeia toda obra é a ausência total de pontuação. Ao estilo de José Saramago, Divanize Carbonieri imprime ao leitor a tarefa de criar a própria pontuação do texto. Caber-lhe-á fazer pausas desejadas, as indagações, as reticências e as finalizações de pensamento, tão marcadas por uma narrativa que desmascara a realidade, mostrando-a nua e seca.
Tal recurso literário imprime um ar construtivo ao livro, porque, se há uma dificuldade natural ao leitor de dar a própria pontuação; por outro lado, é ele quem decidirá a interrupção da leitura para prosseguimento a seguir; salvo na hipótese de um leitor de fôlego se aventurar sem parada nas 95 páginas do título, contando o miolo (texto propriamente dito), o prefácio e o posfácio.
E por falar nessas seções que compõem o volume, convém citar anteriormente a orelha de Malu Jimenez, apresentada como filósofa feminista gorda e doutora em Estudos de Cultura Contemporânea. Tal denominação já antecipa um critério original e contrário ao que prega o senso comum na estética.
Nessa orelha, Malu ressalta em Nojo a ausência de constrangimento, sem papas na língua, acerca de uma narrativa que adentra os conceitos de beleza e feiura, com enfoque ao poder do espelho. Vai além ao mostrar como as pessoas reparam nas outras, sem se importar consigo mesmas. É o espectro da construção de um padrão corporal inadequado. Eu vejo o outro, mas ignoro a mim mesmo, seria tal o paradoxo da sociedade contemporânea.
O prefácio de Alvany Rodrigues Noronha Guanaes, doutora em Estudos Literários, tem início com a valorização do vocábulo-título, uma vez que “Nojo (…) eriça a pele, nauseia as entranhas, deforma o rosto” (p. 8).
Para Alvany, mídias contemporâneas, revistas e a velha televisão são responsáveis pela eleição de padrões comportamentais, os quais agridem as mulheres, a ponto de criarem, uma ditadura do belo. Daí, os selfies, o photoshop e as cirurgias estéticas. Por isso, o livro é um convite a tal reflexão sobre o corpo na pós-modernidade.
Um contraponto interessante é uma voz masculina na apresentação do título. O posfácio foi assinado por Edson Flávio Santos, também doutor em Estudos Literários, membro do Núcleo de Pesquisas Wlademir Dias-Pino (PPGEL/ UNEMAT) e escritor.
Edson Flávio citou a abordagem do grotesco em uma narrativa despudorada, na qual prevalece a voz da sociedade, o grito coletivo, afinal não se trata de um eu que fala, mas um todo, porque “(…) “a sociedade é preconceito é preconceito é racismo é racismo mas o mundo é assim e você….” (p. 69).
O posfaciador levantou três características fundamentais na obra de Divanize Carbonieri, a saber: o tom reflexivo com a consciência clara sobre si; a abordagem de questões existenciais e o desnudamento das personagens com total sinceridade, pois assim a obra cumpriu o papel de ser um instrumento de reflexão contra o machismo, o racismo, a gordofobia, entre outros temas.
No que se refere ao texto, a narradora usa uma linguagem coloquial, beirando o chulo, com presença de gírias ou expressões populares, como o famoso “né”,equivalente a “não é?”. O vocabulário se adequa ao linguajar da personagem que diz: “bunda gigantesca é uma vergonha” (p. 63) (não seria adequado, portanto, o uso do vocábulo nádegas), ou “cu roxo é muito feio tem que ser rosinha” (p.19), que o ratifica.
A ausência das concordâncias verbal e nominal perpassa o texto em “as trança não é tão fina quanto cabelo de verdade” (p. 39); “os vestido de festa” (p. 33);”é justamente harmonizar os traço do rosto” (p. 45); ou “elas tem vergonha na cara e aceita a idade que tem mas a senhora ….” (p. 57).
É, portanto, a narrativa, a voz do senso comum que fala, como o povo, sem meias palavras, É a linguagem como é, sem adornos, sem máscaras.
No que se refere à trama em si, o que uma mulher do povo diria sobre outra que não se adequa aos padrões vigentes de beleza?
O livro discute abertamente, em forma de, ora monólogo interior, ora diálogo, todos os pontos que afligem a mulher e o corpo, quais sejam: a eleição de corpos perfeitos, a depilação, a tatuagem, o trato ou não com o cabelo, a flacidez, seios, nádegas, unhas e pés, as cirurgias plásticas, o cuidado com a beleza estética; em suma, não há uma parte do corpo que escape à análise, incluindo também os pontos sensíveis e referentes à sexualidade humana, como se lê em: ” não tem problema a pessoa ser sapatão bicha o que quiser entre quatro paredes faça o que achar melhor ninguém tem nada a ver com isso” (p. 31).
Interessante a construção do texto de Divanize Carbonieri, que parte da visão do senso comum sobre as mulheres. O trecho “(…) senão todo mundo vai ver que você é relaxada ou vai pensar que você é suja credo um verdadeiro pesadelo (…)” reflete uma generalização. O termo “todo mundo” traz uma visão globalizada sobre o mínimo, sobre como todos os outros enxergam o corpo, que é algo pessoal e não deve seguir às determinações ou ditames de gostos alheios ou modismos.
Sem papas na língua, qual cobra que espalha o veneno no corpo da vítima após o bote, a narrativa é soco após soco: “você é muito testuda bom era cortar uma franja pra esconder esse paredão” (p.15); “que nojo que dá tanta pele tanta banha aparecendo ao mesmo tempo” (p.16);”um sonho que eu tenho é fazer uma plástica na periquita tirar esse tanto de carne que fica pendurado ” (p. 19); “é muito difícil de desembaraçar essa juba” (p. 30); “mulher de unha feita é mulher valorizada todo mundo olha e pensa essa daí é uma mulher que se cuida que tem higiene” (p. 20); “mulher não tem jeito se não for bonita é duro de se casar” (p. 22); “depilar a perereca inteira não tenho coragem de jeito nenhum” (p. 23); “como você quer arranjar um namorado gorda desse jeito?”(p. 24); “já que vai ser feia que nem um cão chupando manga podia ter dinheiro no banco” (p. 24); “nem pentear o cabelo direito você penteia” (p. 25); “coisa mais chique é ser magra e reta como uma régua” (p. 27); “mulher sempre tem que ter o pé pequeno mesmo sendo enorme de alta” (p. 38); “buceta sempre é feia” (p. 45); “na década de oitenta ninguém nem imaginava não existia botox é quase uma carteirinha profissional de atriz” (p. 47); “você precisa emagrecer pelo menos quatro quilo urgente” (p. 49); “mulher tem que ser menos selvagem” (p. 59); “bunda gigantesca é uma vergonha” (p. 63); “não adianta ter um corpo se ele não for perfeito” (p. 86); “porque hoje em dia qualquer motivo é motivo pro homem pro homem bater na mulher ” (p. 88). Além dos complexos de inferioridade e de não aceitação em virtude dos padrões sociais impostos, a narradora cita, ainda, a tumultuada relação com a figura materna, pois, após o divórcio,”minha mãe não me ouve agora inventou de botar silicone nos seio coisa mais ridícula uma mulher dessa idade com os peito duro” (p. 35). Pior ainda era o fato de a mãe beijar a testa de todas as filhas, menos da narradora, afinal beijava a bochecha da protagonista e puxava a franja do cabelo, a fim de não deixar visível o testão.
Com perdão da palavra, Nojo é uma porrada que todo mundo devia ler, é uma experiência fascinante, porque a narrativa trouxe à tona a mulher nua, no sentido pleno da palavra, com seus medos, apreensões e tormentos. Literatura forte, que provoca asco, mas necessária. Nojo, de fato, é um gol de placa de Divanize Carbonieri.