Nove poemas de Marta Miranda traduzidos do espanhol por Demétrio Panarotto
Marta Miranda nació en Mendoza, Argentina. Es poeta, escritora, Magister en Escritura Creativa por la UNTREF, traductora, y gestora cultural. Publicó los libros de poemas Mea Culpa (Nusud, 1991), El Oleaje (Nusud, 1998), La misma piedra (Ediciones Del Dock, 2004), Nadadora (Bajo la Luna, 2008, 2º ed. 2018), El Oleaje y otros poemas, antología bilingüe (Ruinas Circulares, 2013), Antología (Cuadernos Amerhispanos, México, 2013), El lado oscuro del mundo (Bajo la Luna, 2015). Ha sido traducida parcialmente al francés, catalán, portugués, inglés, croata, sueco, portugués e italiano. Dirige junto al escritor Ricardo Rojas Ayrala la Asociación Cultural VaPoesía Argentina, desde donde organizan el Festival Internacional VaPoesía Argentina – literatura e inclusión. Desde el año 1986 reside en Buenos Aires.
Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura (UFSC) e professor de roteiro no curso de Cinema da UNISUL. Músico, roteirista, poeta, escritor e idealizador do programa Quinta Maldita (na webrádio Desterro Cultural) e do PIPA Festival de Literatura (na companhia de Juliana Ben) e consultor do projeto Procura-se um Leitor. Desde o ano 2000 ministra cursos nas áreas de Literatura, Música e Cinema. Dos eventos que participou no cenário nacional e da América do Sul vale destacar: P.E.R.I.F.É.R.I.C.O 2014 (residência musical) e Poética 2015 (residência de poesia), realizados no Espaço Cultural Escola Sesc – Rio de Janeiro-RJ; três etapas (compreendendo os estados da BA, PE e ES) do projeto Arte da Palavra, 2018, Circuito de Autores, SESC Nacional; Projeto Escola Escritora, 2019, curso de escrita para crianças, Sesc – Santa Catarina; e Vapoesia Argentina, Buenos Aires e Mendoza, 2021. Publicou, dentre outros, Mas é isso, um acontecimento [Editora da Casa, 2008, poemas]; Ares-Condicionados [Nave Editora, 2015, contos]; A de Antônia [Miríade, 2016, infantil]; 18 Versos para o funeral de Demétrio Panarotto [Papel do Mato Oficina Tipográfica, 2018, poemas], Tratamento da Imagem [Patifaria, 2018, conto]; Arquipélago [Patifaria, 2018, infantil], Lotação [Medusa, 2018, poemas]; Vozes e Versos [Martelo Casa Editorial, 2019, poemas], Cerzindo e Cozendo [Butecanis Editora Cabocla, 2020, poemas], Privado [Butecanis Editora Cabocla, 2021, contos], 6 Poemas [Butecanis Editora Cabocla, 2021, poemas, edição bilíngue, Espanhol/Português], mais alguns discos (Banda Repolho e projeto Irmãos Panarotto) e alguns filmes. Reside em Florianópolis-SC, Brasil.
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Nove poemas de Marta Miranda
tradução e apresentação de Demétrio Panarotto
Marta Miranda, na companhia de Ricardo Rojas Ayrala, é idealizadora do Vapoesía Argentina. Um festival em que o próprio nome já nos dá uma ideia de como se organiza, afinal, é a poesia que vai até os vários lugares que compreendem as cidades, as periferias e as províncias de Buenos Aires e Mendoza. Os poetas, a poesia, a palavra, a conversa, a troca… circulam, em especial, nas camadas menos favorecidas da população (há, neste caso, um deslocamento dos convidados e convidadas às regiões mais distantes). Ou seja, se faz um caminho inverso àquilo que acontece na maioria dos eventos voltados para a Literatura, em muitos casos marcados por um jogo ególatra entre o famigerado autor-deus e o público que o endeusa. Assim, o Vapoesía se difere de eventos em que a procura é por uma espécie de lugar sagrado em que a poesia e a literatura se apresentam a partir de uma estrutura verticalizada e se coloca mais próximo da uma ideia de troca, mais horizontalizada.
Creio que esse seja o ponto mais importante do festival: romper com uma estética conservadora, aristocrata, por que não autoritária da literatura (em todas as suas medidas). Considerem, por favor, para enfatizar o que venho dizendo, o modo como a Literatura nas academias e nas universidades reproduz, em doses muito bem articuladas, a proposta presente no cânone sagrado da (que tem origem na) igreja católica de forma a cultuar alguns escritores como se estivessem num pantheon. Muitas vezes, em alguns casos, sem perceber, servindo como massa de manobra para os poderes políticos que governam os países, aqui de modo abrangente ou reduzido, latino-americanos. A literatura, a poesia, precisa (ou acredito eu que precisa) desmontar esses estigmas, esses estereótipos e não fortalecê-los. Para tanto, é em eventos como o aqui citado que ainda é possível pensar o texto para além (e, claro, em diálogo) dos redutos do estado, das universidades, das escolas literárias e associações.
Como ponto de partida, imagino que, já temos algo forte e intenso para pensarmos os versos de Marta Miranda: o diálogo poético e orgânico com as camadas socialmente menos favorecidas. Deste modo, por mais que nem sempre seja explícito, é possível dizer que os versos de Miranda estão, sutilmente, impregnados dessa matéria poética. Afinal os versos são, em alguma medida, um resultado de nossas angústias internas que afloram, através de nossas manifestações, os descontentamentos que carregamos em relação ao que nos rodeia, que nos margeia, ou mesmo, aquilo que nos é imposto.
É possível perceber, ainda, nos poemas de Marta Miranda uma aparente simplicidade nos temas e no modo como lida com as palavras, mas nem por isso a tessitura dos versos é simplória. Pelo contrário, há uma leveza combinada com uma certa austeridade; uma secura que ao mesmo tempo é movediça e que se equilibra em um jogo rítmico e harmônico devido aos intervalos que constrói entre os versos, algo que me faz lembrar, se não for exagero da minha parte, a poesia oriental (questão que me interessa desdobrar em outro momento).
O resultado é uma poesia elegante e com versos muito bem estruturados, ainda mais quando temos claro a geografia que os envolve. Marta hoje mora em Buenos Aires, porém não perde as referências mendocinas, sua cidade natal. Lugar em que o choque entre duas realidades, em que o ator principal parece ser a cordilheira dos andes, torna a relação com o mundo ainda mais sensorial. Estou falando das várias miragens possíveis de serem percebidas depois que se está em Mendoza: o deserto, a neve, os tremores de terra, o vinho, pois bem, todos esses pontos de diálogos parecem nos permitir outras tantas percepções a respeito de seus versos.
O frio da noite sendo atravessado pelo calor do dia, o deserto pela neve, a água do desgelo e em abundância pela falta (ou pelo controle do estado), a estabilidade do passo medido que se desgoverna por conta das alterações nas placas tectônicas que criam nas pessoas (nos edifícios também) uma necessidade sensorial de um outro ponto de equilíbrio. Ah, sem contar o vinho, o bom vinho — de uma uva, Malbec, que se adaptou muito bem a esse solo — que bambeia os pés, mas ajuda a equilibrar as agruras do coração e da alma.
Mas talvez aquilo que mais tenha me chamado a atenção em Mendoza (da Mendoza que conheci), nas duas vezes em que lá estive, foi a solidariedade do povo, em especial dos mais carentes, como modo de atravessamento de uma imposição estrutural do mundo, governado pelo estigma do dinheiro, demarcado por uma busca constante pela sobrevivência. O que remonta a história de uma cidade destruída em 1861, século XIX, numa sequência de eventos — terremoto, incêndio e inundação —, e que precisou se reerguer. Ou seja, e friso, a constante necessidade de se reerguer.
Talvez possa resumir essa experiência com as seguintes palavras:
“Polvo, pólvora y la nieve”.
Deste modo, os poemas de Marta Miranda são escritos a partir de um lugar de fala carregado de experiências de compartilhamento, de atitudes, de solidariedade, de troca, de entendimento do outro que são, por extensão, carregados de poesia, de literatura, de leituras de mundo, de vida. Afinal a poeta está impregnada dessas experiências.
Os poemas aqui selecionados, dois deles mais recentes, nos revelam o constante diálogo que Miranda emprega com as questões sociais até agora abordadas. O primeiro, O outro país, inédito, nos revela a busca por um país possível, aquilo que em algum momento tentam nos dizer que não passa de uma utopia, mas que se faz vivo na força de mulheres e de homens de consciência social. O segundo, inédito também, se debruça sobre o modo como o ser humano, em meio a metáfora do rio, parece tratado como apenas um número diante da máquina de fazer dinheiro do estado, sempre às custas das vidas humanas. Pelo Rio Magdalena, os corpos e os peixes seguem o fluxo do rio. Um rio que alimenta, mas que também é lugar de controle e de desova daquilo que não se quer. O pai, quando retorna até sua casa, leva os peixes e ao mesmo tempo carrega outras tantas imagens.
Os demais, sete ao todo, são poemas selecionados do livro “El Oleaje”, de 1997, um dos primeiros livros de Miranda. O título do livro, que podemos traduzi-lo como ondulações, uma “ola”, nos joga nesse espaço de camadas de matéria sempre em movimento, que alimentam os versos muito bem elaborados e nos movimentam em meio a eles. Talvez esse seja o momento em que percebo a poesia de Miranda atravessada das referências que marcam os diálogos com a sua cidade natal, principalmente quando entrecortados pela imagem do deserto, mesmo que metaforicamente. Algo que nos sugere que, mesmo que a poeta não viva mais em Mendonza, é como se Mendoza vivesse dentro dela. Isso faz com que os versos retornem sempre ao seu ponto de partida. Assim, a geografia poética não se perde do eixo que a referencia.
São poemas que, acredito, se dividem em situações distintas, três deles a partir da construção de cenas e de uma personagem que ocupa esse espaço simbólico do palco, que podemos traduzir na imagem de Matineé (o único poema selecionado com título), como uma cena congelada em algo do passado, ou como uma metáfora da falta de possibilidade de algo mais. Nos demais, a cena do deserto é tentadora, ainda mais quando pensamos em tornozelos presos na areia, como uma metáfora da impossibilidade de reagir ao mundo que aí está. Percebam que mesmo que a cena do baile e do deserto pareçam distintas, os personagens, por Marta criados, parecem presos a uma situação ou a uma imagem. Há nos versos uma crítica a sensação de impotência diante das imposições do mundo capitalizado e que essa crítica é potente em sua expressão artística.
Talvez possa dizer tentando criar um último fio crítico com a escrita de Miranda, para me despedir antes da sequência de poemas, que somos filhos do pó e ao pó retornaremos junto com nossos escritos, mas, antes de qualquer coisa, o retorno deve ser inundado, como as águas das cordilheiras quando invadem os canais da cidade, de uma ideia de povo maior do que as reduções que nos fazem reféns de um mundo sentenciado pelo dinheiro.
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O outro país
Existe um país
onde homens e mulheres
madrugam, preparam o café
saem para o trabalho, para a escola
outros esperam em casa,
tecendo
amorosamente o dia
Existe
outro país
porém não aparece
nas notícias
/
El otro país
Existe un país
en donde hombres y mujeres
madrugan, preparan el café
salen hacia el trabajo, la escuela
otros
esperan en la casa,
tejen
amorosamente el día
Existe
otro país
pero no aparece
en las noticias
*
Rio Magdalena
Tua tarefa, pescador
era trazer o pão e os peixes para
a mesa, teu pai e o pai
de teu pai
não falavam dos
mortos, no entanto
aqui estás
ao lado de Magdalena,
olhos escuros e adivinhos
sob a corrente
bocas
que repetem todavia
a última pergunta
corpos como peixes
se perdem rio abaixo
rio acima
a tristeza remonta
até o coração de todos
/
Río Magdalena
Tu tarea, pescador
era traer el pan y los peces a
la mesa, tu padre y el padre
de tu padre
no hablaban de los
muertos, sin embargo
aquí estás
a la vera del Magdalena, ojos oscuros se adivinan bajo la correntada bocas
que repiten todavía la última pregunta
Cuerpos como peces se pierden río abajo
río arriba
la tristeza remonta
hasta el corazón de todos
*
Matinê
A partir do ponto mais distante
sua pele é testemunha
do calor e do baile
Quem dirige a orquestra
fiel a seus desígnios
sacode sua mão e os corpos
se mexem se inquietam somente
como barcos
desertos depois da tormenta
A partir do fundo
do salão a recordação
golpeia a garganta
chama ao palco
a figura da
boneca pálida
que num instante
solitária
num instante
com lábios semicerrados
dançava
delicadamente um foxtrot
/
Matineé
Desde el punto más lejano
es testigo su piel
del calor y del baile
Quien dirige la orquesta
fiel a sus designios
sacude su mano y los cuerpos
se mecen se inquietan apenas
como balsas
desiertas después de la tormenta
Desde el fondo
del salón el recuerdo
golpea la garganta
llama a escena
la figura de la
pálida muñeca
que hace un momento
tan sólo
un momento
con labios entrecerrados
bailaba
delicadamente un foxtrot
*
De cara para o vento
tornozelos
fundidos na areia
O mar ao
se retirar
como um deus instalava
pequenas
geografias nas bordas
do teu pé
/
De cara al viento
tobillos
hundidos en la arena
El mar al
retirarse
como un dios instalaba
pequeñas
geografías al borde
de tu pie
*
Palco móvel
em momentos que se congela é
a hora então:
de mudar a expressão
Tanto movimento e porém
presos
Atrevo-me a olhar por cima
de teus ombros, te vejo
aperto tua mão e penso
se já não fomos
longe demais
/
Escenario móvil
por momentos se congela, es
el turno entonces:
a mudar la expresión
tanto movimiento y sin embargo
detenidos
Me atrevo a mirar por encima
de tu hombro, te miro
aprieto tu mano y pienso
si no habremos ido ya
demasiado lejos
*
Se posso
possuir o instante
sorrir
por antigos
salões espelhados
O que
não posso é
deixar de ser
uma ferida aberta
na sombra
/
Se pudo
poseer el instante
sonreir
por antiguos
salones espejados
Lo que
no se pudo es
dejar de ser
una herida abierta
en la sombra
*
O mesmo pó
o mesmo
cheiro
marcas no piso
que vão ou vêm
e sempre sempre
o mesmo rosto entreolhando na janela
esperando voltar
o início de seu percurso
/
El mismo polvo
el mismo
olor
marcas en el piso
que van o vienen
y siempre siempre
el mismo rostro asomado a la ventana
esperando volver
a iniciar su recorrido
*
Perdido o sol
esparramado no buraco
não pode abraçar
tamanha espessura
Quer voltar e nada
Está perdido o fio
perdida a parede
que se golpeava
/
Perdido el sol
desplegarse en el hueco
no poder abarcar
tanta espesura
Querer volver y nada
Está perdido el hilo
perdida la pared
que se golpeaba
*
poder viver só no abrigo
do poema
e de tua mão que não alcança
fazer parte
do milagre
/
poder vivir sólo al abrigo
del poema
y tu mano que no alcanza
a ser parte
del milagro
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(Fotografia [Panarotto] de Pati Peccin [detalhe em p&b da versão original colorida])
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Demétrio Panarotto: