Nove textos de Dolores Kroetz
Dolores Kroetz é uma mulher que foi abandonada no meio de uma estrada. Criança, dentro de um casulo. Passou meses, quiçá anos, ali dentro, em silêncio. Em algum momento sentiu o ímpeto de rasgar aquela coisa grudenta que envolvia seu corpo. Rasgou, abandonou alguns pedaços de pele, e quis andar sem rumo. Ela não tinha nada a perder. Hoje coloca paixões, reflexões enclausuradas e sangue dentro de suas palavras.
***
Não leve flores
Você passa horas sentindo o coração amaciar a um som de frequência específica. A matemática, por incrível que pareça, se faz presente em algumas situações advindas do nada e que retornam ao seu lugar de nascimento – tudo é tão efêmero, e o mais efêmero parece ser o mais real. Um tiro transpassando pelo pulmão, um gole de uísque queimando seu estômago, uma onda eletromagnética no cérebro de fulano, uma célula cancerígena em atividade, uma palavra dita sem ter passado pela razão. O que há de comum entre nós não é matéria, e sim o vácuo. O lugar-comum onde tudo é depositado. Tuas palavras estão depositadas ali. Antes, elas eram depositadas no tecido muscular da minha aorta, das minhas entranhas, no meu córtex. Tudo é escolha. Você fez a sua. Em um dia que o céu era de baunilha e madeira, você fez a sua. O horror, o horror, o horror. E nada mais. Não leve flores.
*
Crônica suburbana
Hoje eu acordei mais cedo
sentindo o cheiro do café
do vizinho
pensei naquele estranho que
um dia esbarrei
na rua
todos sempre me parecem
familiares
no fim das contas
Tirei a cortina do caminho
percebi o sono generalizado
que se instalava
entre as árvores
com suas folhas outonais
que dançam imperceptivelmente
com aquele vento
aquele que você sabe
qual é.
Em meu sonambulismo existencial
vago entre a cozinha e a sala
de um apartamento tão
pequeno
o contato da minha pele
com as partículas de poeira
da atmosfera
menor ainda
Andando incansavelmente pelo
bairro
Que conheço há dez anos
Que não mudou quase nada
vejo ao longe aquela senhora
de sempre
Ela passa o dia todo sentada
em frente ao boteco da
esquina
o dia todo
todos os dias
por anos
por muitas horas
Eu penso, o que diabos
esta senhora
de semblante tão
impassível
virtuoso e forte
pensa
durante todos esses infernais
minutos?
Será uma tela em branco?
Ou em seus filhos
nos dias não vividos
Aquilo me deixa
em estado sinestésico.
Desço mais um pouco
os pedreiros de sempre
os marginais de sempre
o lixo
o cheiro de putrefação
os trabalhadores da última
hora
subo as escadas
giro a chave
as partículas de poeira continuam
ali
o cheiro de café continua
e eu lembro
daquela senhora
que no seu último suspiro
continuará
ali.
Isso é
Paz.
*
(sem título)
Às vezes sinto como se eu
sempre soubesse
que eu iria
embora.
O seu canto cortou a minha
carne
e meu sexto sentido tragicômico
não teve escolha
a não ser ir.
Nasci para ir.
Você não está só, baby blue
eu sei das vozes que você ouve
à noite, quando todos dormem
Você preferiu ouví-las.
São apenas
escolhas.
Já não tenho mais pressa
Já não tenho mais ânsia
Nós somos filhos do tempo
que não tem
Início.
*
(sem título)
Olhando o cigarro queimar
lentamente
em suas cores vermelhas laranjas
brancas
Cinzas
Reconheci.
Era meu próprio Eu se queimando.
Se queimando com a luz que irradia
de cada órbita
Se queimando com o frio calor
de vozes
petrificadas
Se queimando por algo que não existe
Nunca vai existir
mas eu sei aonde
É.
Talvez fosse mais fácil
Não
Saber de nada.
Acredita que eu
ainda penso
em voltar
onde eu
Morri?
*
Uivo revisitado
Eu vi as melhores cabeças de minha geração destruídas pela
indiferença, morrendo de dor, quietos, nus,
correndo pelas ruelas antigas às seis da manhã
em busca de uma palavra,
hippies com olhos ansiosos pelo contato transcendental de
seu Eu com alguma parte do mundo,
que miseráveis, mãos sujas e tênis gastos, viajaram
fumando em pé na singela luz
das sarjetas com esgoto, flutuando
sobre os limites da cidade contemplando blues,
que meditaram incessantemente em busca de uma
resposta e encontraram ódio em espíritos
tibetanos que riram de suas caras,
que foram mortos por uma surra de alguém
desconhecido e tão perdido
quanto eles,
que foram mortos por uma dose violenta
de barbitúricos guardados antigos
na gaveta em caso de emergência,
que passaram boa parte de sua existência
observando algo sem nenhum propósito
e inteligentes e mudos,
reencarnaram com o coração completo da não-poesia da vida
santa e sobrenatural
arrancada sem violência nenhuma
daquilo que um dia foi
mais do que tudo.
*
(sem título)
Uma paz perpétua. Uma espécie de certeza que é o farol dentro de um oceano de dúvidas. Uma coisa que me aconteceu de maneira tão natural e profunda que parece ter existido sempre. Infinitamente. Se estendendo de maneira indefinida e rápida. Contemplando, intensificando, também amenizando o que existe de mais real. Mesmo que nada seja real. Parece ser um alicerce mas é apenas o gás que acende o meu fogo. Queimar. Queimar a ignorância, o medo, as armadilhas e as máscaras. O fogo não é ilusório. Essa natureza espantosa destruindo o que é baixo. O que é vil. Para que tudo possa renascer. Para que tudo possa se realizar da maneira mais simples.
*
Segunda face
Ele estava perdido em um estado de sonho. Sono, sonambulismo. Não era verdadeiramente ruim. Ali ele poderia sentir de uma maneira diferente, como se estivesse debaixo d’água. Tudo era dual. Depois de sentir a inadequação, lembrava de algo ínfimo do passado que era capaz de preencher os olhos. Chegava a náusea e depois de um milissegundo a vontade de chorar. Tudo era possível, como as infinitas possibilidades na atividade de um átomo. Ele sentiu que não deveria estar ali. Mas era tão bom. Então começou a ouvir alguns passos se aproximando. Teve medo de verem as marcas de unha na parede. Marcas brancas. Ruídos brancos. Ele sabia que não poderia fugir.
*
Você quer encontrar a redenção
Você quer encontrar a redenção
Você quer encontrar a redenção.
Como um mantra.
Você não aguenta mais os seus próprios pecados.
Que você acha que são pecados.
Mas você está preso em uma camisa de força.
Centenas de cadeados
envolvem a tua garganta
Teus pés estão dormentes
Logo serão amputados
Você pede pra que seja sem anestesia
E quer que sejam enterrados no quintal da tua casa.
Você acha que a redenção também está te
procurando
Ela dá um soco na porta de entrada
Porque você não ouviu ela gritando
Então ela pensou que você estava morta
A porta racha ao meio
Você corre assustada e dá risada.
Vamos dar uma volta?
*
Átomos e o vazio
Meu mestre na arte,
logo se ouviu uns discursos do medo.
o homem estende-se, olha:
deverias ter te preparado há muito tempo.
Agora, para a chegada te perco, sim,
mas minhas mentiras sabem
que perder é um atalho.
Preste atenção,
minha desconexão vazia.
Se soubesses a verdade,
acabaria com sua honradez.
Nasceria outra vez,
e tu, grito aterrado da multidão,
estaria pronto para esse fim-começo
inanimado sobre o rochedo.
Tenho estado na cama do poema.
Que eu seja digno dele.
Assim as perguntas serão
respondidas pelo mérito do meu ser.
.
Amanda f.
<3