O avesso do avesso do avesso do eco – Por Esteban Rodrigues
O avesso do avesso do avesso do eco
o futuro chegou há 140 anos quando Lili Elbe chorou
ao nascer
o futuro chegou quando registraram-na mulher
mulher com todas as letras
mulher com todos os cheiros
mulher mulher mulher mulher mulher
mesmo quando eles gritaram: homem
o futuro chegou antes de Stonewall
é preciso lembrar sempre disso
marcos não são inícios
marcas não ditam finais
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eu lembro de cada tapa na porta do peito
fazendo o coração tremer
quando gritaram-me mulher
mulher mulher mulher mulher mulher
sendo eu homem
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o cistema se beneficia da própria amnésia intencional
e aí o apagamento violência silenciamento coerção
imposição de uma representação de gênero
encaixotada
a religião se beneficia dos discursos de ódio
contra o corpo não-cis não-hetero
com a ideia de um inferno só com gente como nós
e outros piores
nós que queremos viver
e todos os outros piores
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lembro de chorar e me perguntar
quando eu poderia gritar com deus
quando
eu poderia
gritar com deus
?
?
?
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há uma lacuna entre a voz e o sopro
há uma lacuna entre a vida e a luta
mas essa ruiu
quando, na rua, quem nos vê?
quando, na mesa, quem nos ouve?
quando, na cama, quem nos ama?
visibilidade, para o cistema: propaganda em janeiro
trans, para a cisgeneridade: já ouvi falar de um deles
lembrem
lembrem
lembrem
lembrem do que eu digo
:
o avesso
do avesso
do avesso
do eco
é o grito
::
você não vai esquecer de mim
tão fácil
e sabe disso
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Assinada por Esteban Rodrigues, Ogiva Transpoética é coluna autêntica. Com desvios, inclusive. É um espaço de percepção, reflexão e interação, onde se alimenta a vida com vida. Atravessado por textos ensaísticos e poemas motivados, não apenas em primeira pessoa, aqui vai repousar a realidade bruta do que alcança a transgeneridade de forma sistemática, social, emocional, violenta, afetiva e política. De quinze em quinze, para dar tempo de processar/digerir/degustar a palavra lançada, haverá reflexos de pesquisa e de poética transcrita e exposta a céu aberto. E, ocasionalmente, o tempo feche após isso. As letras aqui dispostas passearão por espaços julgados não nossos: filosofia, literatura, política, teatro e rua. Tudo para dizer o que há muito é dito, crendo dessa vez no espaço da escuta. Essa coluna, que alcança tantos corpes no mundo, existe para mostrar que aquilo que grita também pode ser chamado de cura.
Esteban Rodrigues, 25. Homem trans, negro, do subúrbio de Salvador. Autor das obras Sal a gosto (2018) e Com mãos atadas e como quem pisa em ovos (2021). Integrante das coletâneas Poemas de Amor e Guerra (2021), Corpos Transitórios (2021) e Transmasculinidades Negras (2021). Graduando em Letras Vernáculas com Língua Estrangeira Moderna (UFBA). Pesquisador de gênero e raça, escritor, professor, produtor cultural, roteirista, multiartista. Diretor Cultural do Mister Brasil Trans, 1° concurso do mundo e no universo da moda focado em transmasculinidades e suas representações. Integrante dos coletivos TransPoetas e CATS.