O lugar que habito, parte II – Por Ariadne Marinho
“À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo”.
Ariadne Marinho é historiadora, pesquisadora e mãe de Dionísio e Tom. Cuidadora da gata-idosa Cavalo de Fogo e da jovem cachorrinha Frau Caramello. Doutora em História pela UFMT.
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O lugar que habito, parte II
Na sociedade do espetáculo, do momentâneo e dos posts efêmeros, o corpo mal-dito, aquele que escapa do padrão, pois, imperfeito, torto, excessivo, é associado ao anormal, amiúde interpretado como dependente de reparos; ora raspado, mutilado, enfim, remodelado. Nos interstícios entre o real e virtual, emergem filtros para os clicks das mídias sociais; de maneira mais radical, popularizam-se as intervenções cirúrgicas miraculosas, prometedoras de “melhoramentos” instantâneos, aniquilando as irregularidades e, assim, proporcionando cada vez mais likes, emotions sorridentes, comentários positivos. As redes sociais, a indústria de massa e as corporações de beleza (moda e cosméticos) propagam nas grandes mídias os discursos e representações de um corpo bem dito, excluindo o corpo mal-dito e tornando-o um corpo não dito, pois, tomado como desleixado, descuidado, negligenciado, indesejável e que, portanto, deve ser segregado, escondido, posto à margem. O retrato do corpo “belo”, inalcançável, orquestra uma frustração, uma rejeição de si, erigindo um mundo ideal. E irreal.
Existe uma ambivalência aí, do corpo que se habita ao corpo que se almeja, que reflete uma grande discrepância entre a projeção desejada de uma forma tal de beleza e a realidade físico-corporal da grande maioria da população, vale dizer, de trabalhadoras e trabalhadores que enfrentam toda sorte de vulnerabilidades em um cotidiano cruel. É uma questão política. Ora, a idolatria estética reforça a acepção de que uma única identidade corporal deve ser estendida e adotada como coletiva. Não por acaso, o holocausto na Alemanha Nazista começou com o extermínio de doentes e deformados. A identidade é uma construção social, erigida pela interação ou pelas interações, dentro de um tempo determinado e em certa(s) comunidade(s). Envolve valores morais e prioridades econômicas, tanto quanto hábitos materiais e costumes imateriais, heranças culturais e partilha de pensamentos. Daí que não seja um dado da natureza.
Na contemporaneidade, a magreza é entendida como norma. Em contrapartida, o corpo gordo, que em outros tempos denotava abastança e fartura, é agora estigmatizado. A sociedade impõe a magreza como o perfil a ser alcançado, logo, torna-se um instrumento de regulação social e, por extensão, de dominação, de obediência. “Seja magro/a ou viva excluído”. É isso que nos dizem. Mas o que fazer com a constatação da atual epidemia de pessoas em sobrepeso, com obesidade? O acesso à saúde e à alimentação saudável consiste em outra questão da esfera política. E aqui a contradição é evidente. Na cultura do fast–food, a obesidade é norma – não exceção.
Não mencionamos aqui o apagamento dos corpos não-brancos, velho e femininos, que são tolhidos do direito de existirem. Ou o corpo-fetiche, hiperssexualizado, como o corpo trans, transformando em objeto de satisfação alheia. A submissão aos desejos do opressor é a mais vil de todas as maneiras de diminuição da pessoa, retirando-lhe a dignidade. Do corpo das/os deficientes, molestadas/os ou posto de lado, como sujeitos sem anseios e/ou necessidade. Para Geledés, “A corporalidade se dá na vivência com o outro, se dá no conhecimento do lugar histórico que esse corpo está” (GELEDÉS, 2016).[1] Assim é com a tatuagem, que perpassa do estigma ao objeto de consumo e de identidade social. Assim é com os cabelos e suas pluralidades.
Infelizmente, muitos de nós ainda vivem em corpos não inteiramente apropriados, isto é, não nos apropriamos inteiramente de nossos corpos. Não o aceitamos e não aprendemos a amá-lo. Pelos motivos – e muitos outros – que elencamos acima. Por isso, não nos sentimos pertencentes à sua forma. Hoje e sempre, eu desejo a você, leitora e leitor, um corpo repleto de potencialidades e liberto de entraves: lembrem-se: você é seu “próprio lar”!
Em tempos de crise,
em clima de golpe,
a intervenção é eminente
Por muitos ovacionada,
para outros arrepiante,
beira o desespero,
o medo.
Meu corpo estremece,
meu corpo preto,
meu corpo pobre,
Meu corpo velho,
Meu corpo deficiente,
Meu corpo mestiço
corpo de mulher,
meu corpo bis,
homo,
trans,
meu corpo tatuado,
Indígena
corpo que marca a minha rebeldia,
marca também a repressão
Meu corpo assassinado
Minha morte sem valor.
Nota
[1]Informações retirada em: https://www.geledes.org.br/corpo-cor-e-alteridade/ Consultado em 01/02/2023.
(Imagem de capa: Ted Lawson).