O mau amor: poemas de José Sbarra traduzidos do espanhol por Camila I. Medail
José Sbarra (1950-1996) foi poeta, escritor, diretor de teatro e roteirista argentino. Publicou vários livros infantis e dirigiu o evento poético “El circo de poesia de José Sbarra”. De sua obra poética destacam-se os livros Obsesión de vivir (1975), Marc, la sucia rata (1991) e Plástico cruel (1992). Os poemas aqui traduzidos estão presentes no livro póstumo El mal amor (2017), editado por Dagas del Sur.
Camila I. Medail (Entre Ríos, 1993) é escritora, taróloga e editora argentina. Bacharel e Licenciada em Letras pela Universidade de Buenos Aires (UBA), publicou artigos e traduções de poemas de Marosa di Giorgio nas revistas Sombralarga (Colombia) e Ruído Manifesto (Brasil). Também traduziu poemas de Matheus Guménin Barreto para o espanhol para a revista Ablucionistas. É co-criadora de Ténder, espaço virtual em que ministra oficinas literárias.
***
Meu coração não deixa de te amar,
insiste no erro.
/
Mi corazón no deja de amarte,
insiste en el error.
*
Tudo existe caprichosamente. As estrelas estão de
enfeite e, com certeza, deus está sobrando.
O mistério é apenas vazio. Os gatos existem
para te ensinar a afundar os olhos no silêncio.
Outubro poderia se chamar adeus ou quinta-feira ou alaúde.
A paz é tédio. O sol se pavoneia cheio de ouro.
E a lua finge ser um transatlântico que está de farra.
Nada concorda com nada. E mesmo assim, eu,
a poucos metros de meu fim, ainda espero
uma porção de amor.
/
Todo existe caprichosamente. Las estrellas están a modo
decorativo y, por supuesto, dios está de sobra.
El misterio es sólo vacío. Los gatos existen
para enseñarte a hundir los ojos en el silencio.
Octubre podría llamarse adiós o jueves o laúd.
La paz es tedio. El sol se pavonea lleno de oro.
Y la luna finge ser un transatlántico que está de fiesta.
Nada concuerda con nada. Y sin embargo, yo,
a escasos metros de mi final, espero todavía
una ración de amor.
*
Você não partiu,
aconteceu algo mais grave
incorporou-se à minha coleção de abandonos inapeláveis,
você não me deixou
tornou evidente minha orfandade cósmica.
Você não me traiu,
gravou minha ingenuidade no museu do arrepio.
/
No te fuiste,
sucedió algo más grave
te integraste a mi colección de abandonos inapelables,
no me dejaste
pusiste en evidencia mi cósmica orfandad.
No me traicionaste,
grabaste mi ingenuidad en el museo del escalofrío.
*
Solicita-se tua presença.
Reclamam tua assistência meus fêmures
e seus tendões vizinhos.
Clamam-te minhas clavículas.
Todos meus leucócitos perguntam por você.
Minha traquéia recusa seu movimento de marés.
Sua presença é necessária neste recinto de pele.
Meus dentes não permanecerão ancorados
em suas baías se teu sorriso não os cumprimenta.
São cento e poucos ossos que ameaçam
desmoronar catastroficamente.
É imprescindível que você compareça ao salão
dos passos perdidos de meu crânio.
Sentem tua falta as veias e artérias
que sustentam meu orgulho.
Implora-te, imperiosamente, meu esterno.
/
Se solicita tu presencia.
Reclaman tu asistencia mis fémures
y sus tendones vecinos.
Te llaman mis clavículas.
Todos mis leucocitos preguntan por vos.
Mi tráquea se niega a su movimiento de mareas.
Hay necesidad de vos en este envase de piel.
Mis piezas dentarias no permanecerán ancladas
en sus bahías si no las saluda tu sonrisa.
Son ciento y pico los huesos que amenazan
con desmoronarse catastróficamente.
Es imprescindible que concurras al salón
de los pasos perdidos de mi cráneo.
Te extrañan las venas y las arterias
que sostienen mi orgullo.
Te demanda imperiosamente mi esternón.
*
E uivaram afogadamente os azulejos
e derramaram sangue pelas dobradiças todas as portas
e balançaram-se como enforcados as aranhas
e estremeceram-se de pavor as persianas
e as tuas últimas palavras ficaram pairando
como crianças abandonadas no limiar da casa
e a grama do jardim arrepiou-se de desengano
e enferrujou-se a fechadura para impedir
que seu único olho testemunhasse
uma cena de tanto desamparo
e houve um escândalo de cascalho no caminho
e até o ar entristeceu-se com a pancada
de teu adeus.
/
Y aullaron desgarradoramente los azulejos
y derramaron sangre por sus goznes todas las puertas
y se balancearon como ahorcados las arañas
y se estremecieron de pavura las persianas
y tus últimas palabras quedaron suspendidas
como niños abandonados en el umbral de la casa
y el césped del jardín se erizó de desengaño
y se herrumbró la cerradura para impedir
que su único ojo presenciara
una escena de tanto desamparo
y hubo un escándalo de grava en el sendero
y hasta el aire se entristeció con el aletazo
de tu adiós.
*
Os barcos derramaram toneladas de petróleo nas
xícaras de café com leite e morreram os órfãos de todos
os jardins da ternura.
Os ratos não encontraram o caminho de volta para suas
tocas e abandonaram involuntariamente seus filhotes.
Os juízes, mais convencidos do que nunca do valor da
lei, condenaram impiedosamente os delinquentes.
Eu entrei num hospício acreditando que era meu lar e
dancei com tanta emoção que conquistei o primeiro lugar
no festival olímpico da demência.
E estas são apenas algumas das incontáveis catástrofes
que aconteceram no dia em que você partiu.
/
Los barcos derramaron toneladas de petróleo en las
tazas de café con leche y murieron los huérfanos de todos
los jardines de la ternura.
Las ratas no encontraron el camino de regreso a sus
cuevas y abandonaron involuntariamente a sus crías.
Los jueces, convencidos más que nunca del valor de la
ley, condenaron sin piedad a los delincuentes.
Yo entré en un hospicio creyendo que era mi hogar y
bailé con tanta emoción que me dieron el primer premio
en el festival olímpico de la demencia.
Y estas son solo algunas de las innumerables catástrofes
que sucedieron el día que te fuiste.
*
No amor, depois do primeiro,
tudo é fingimento.
/
En amor, después del primero,
todo es fingido.
____________________
José Sbarra: