o que “pobres criaturas” e “barbie” têm de mais em comum? ou as ciladas de um “feminismo universal” – Por Daisy Serena
“a diáspora é um coração-quilombo” é coluna reservada à artista multidisciplinar Daisy Serena.
A coluna tem como proposta uma abertura para as mais distintas expressões artísticas (às vezes a palavra, noutras as artes visuais, em outros momentos o audiovisual).
Entrevistas, críticas, o diálogo entre poéticas, entre visuais – e muito mais – formarão a coluna, que irá ao ar sempre na última segunda-feira do mês.
Daisy Serena sobre “a diáspora é um coração-quilombo”: “é um título especial pra mim (…) que diz sobre tudo que me atravessa como pessoa e artista preta na diáspora”.
Daisy Serena (São Paulo, 1988).
Artista visual e escritora com estudos em Sociologia e Política na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Autora de Tautologias (poesia, Padê Editorial, 2016). Tem poemas publicados em revistas digitais como Escamandro e Chão da Feira.
Como artista visual teve sua estréia solo com a exposição: Tecituras de Tempo & Identidade (Mostra de Criadoras em Moda: Mulheres Afro-latinas, no Sesc Interlagos, 2016). Também participou das exposições coletivas FotoPreta (2018 e 2020) com curadoria do coletivo Afrotometria. Tem obras de diferentes linguagens visuais publicadas em revistas digitais como Menelick 2º Ato, Garupa e Doek! (Namíbia).
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o que “pobres criaturas” e “barbie” têm de mais em comum? ou as ciladas de um “feminismo universal”
apesar de um ser dirigido por uma mulher (norteamericana) e o outro por um homem (grego) a resposta vem de forma óbvia: uma suposta agenda feminista.
a repercussão não mente pelas bolhas adentro e afora; mulheres se sentindo contempladas e/ou vingadas cinematograficamente.
mulheres feministas.
o que “pobres criaturas” e “barbie” têm de mais em comum? será isso mesmo?
um se diz uma crítica à marca mattel (com a redenção, ao meu ver, da própria marca); o outro uma jornada rumo à libertação, com destaque sexual, de bella baxter, a escolhida para representar “as mulheres feministas”, no fim das contas.
Margot Robbie
Emma Stone
e seus rostos, ditos, angelicais contra o patriarcado.
qual o meu problema com esse gozo, com essa suposta vitória de um discurso feminista?
é que fosse um artigo poderia se chamar:
“Barbie”, “Pobres Criaturas” e a vitória do discurso feminista…branco…liberal.
se há uma pauta geral das mulheres é sim de como seus corpos e subjetividades são reprimidas, controladas e massacradas (no feminino mesmo) pelos homens em toda história da colonialidade, capitalismo e poder masculino ocidental.
mas se há uma pauta que precisa andar junto, no mínimo, é de como as mulheres negras ainda precisam lutar nas mais diversas esferas pela sua humanização, para serem vistas como mulheres e não acessórios da branquitude; seja na diégese do universo fílmico; seja na vida, já que uma resulta na outra.
ao mesmo tempo em que o feminismo branco comemora um protagonismo, acidez, desenvolvimento nestes filmes, segue no erro de se universalizar como “O Feminismo”, o que faz as opiniões e resenhas que tenho lido caírem na cegueira diante da coadjuvância e figuração das mulheres negras, como se houvesse um real ganhou coletivo.
não basta colocar a Issa Rae – poderosa atriz, produtora, roteirista, diretora afroamericana da Hollywood atual – como a presidente do mundo Barbie, se ao mesmo tempo sua personagem não tem nenhuma profundidade além desse cargo “cala boca da militância”. é basicamente figurante, não tem enredo, quase não aparece, não tem complexidade.
não adianta colocar América Ferrera num aparente destaque de coadjuvância, sendo uma representante caribenha/latina (embora seja americana, seus pais são de Honduras), e sua história ser acessório da Barbie, a que vai devolver a autoestima da Barbie, lutar ao lado da Barbie, pela Barbie.
papel muito semelhante foi dado para a atriz francesa Suzy Bemba em pobres criaturas. ainda mais grave, em termos de subjetividade. Bemba cumpre alguns papéis que o filme não aprofunda, mas deixa explícito: o de politização de bella baxter, já que sendo socialista é ela quem leva a protagonista para as reuniões de organização; o encontro com o verdadeiro gozo; o encontro com o que seria mais próximo de um amor libertário.
porém, o gozo e o amor que é cabível a essa mulher negra libertária que trabalha como prostituta, é o amor servil – olha se não é o velho clichê (discutido por todas as pensadoras que o feminismo branco diz ler: lélia, audre lorde, grada, sueli carneiro, bell hooks, e tantas mais). é ela quem se preocupa com a saúde de baxter, com o afeto de baxter, em ninar/encantar baxter através de seu canto, a cena de sexo entre as duas é com foco exclusivo em bemba dando prazer à bella.
como houvesse uma promessa silenciosa depois cumprida: a “recompensa” de “libertar-se da prostituição”, de viver ao lado de bella, ser sua acompanhante na vida pós “empoderamento”, quando bella já completou seu processo de rehumanizar-se e agora assume seu lugar de proprietária (herdeira, né) da mansão de seu “criador”.
do que me vale aqui.
digo por mim e por minhas irmãs, ninguém tá interessada em ser bibelô e manter as posições do imaginário construídas pela hegemonia branca. passar de damas de companhia e serviçais nas narrativas de sec. xix de sofrimento romântico alheio, para dama de companhia de mulheres que, ufa, alcançaram sua liberdade e, quando em vez, nos permitem sentar na cadeira de segunda mão.
façam o teste, mas deixarei as imagens: pesquisem no google esses dois filmes. na lista de elenco as mulheres latinas e negras, aparecem depois da nona, décima pessoa do elenco. joguem os títulos na pesquisa de imagens e nem aparecemos, a não ser quando pesquisamos especificamente a personagem. Isso diz da relevância que elas (não) possuem nestes enredos feministas.
sabemos que os filmes não darão conta de todas as pautas, mas também não somos ingênuas de fingir não saber que há imensa preguiça em refletir, em ter uma equipe de pensadoras negras juntas na sala de roteiro para que estereótipos básicos não sejam repetidos, principalmente em filmes que querem se dizer universais.
esse é o mesmo feminismo que coloca mulheres negras como pouco tolerantes quando tecem críticas com o mesmo tom que pessoas brancas. como se estivéssemos atrapalhando suas conquistas.
aquele que se levanta feroz, em atos e protestos virtuais coletivos, contra mortes violentas de algumas companheiras, mas nem ficam sabendo de outras mortes igualmente terríveis de meninas lésbicas negras.
da vida para arte
da arte para vida
é preciso estar atentas ao deslumbre e às invisibilizações para não virar, no descuido, sinhá simbólica de ninguém.