O tempo do texto de Gabriele Rosa e uma breve prosa
no futuro o café é passado é um verso que escrevi há anos e venho revisitando com o passar dos dias que transformam a humanidade, que transtornam a sociedade. hoje o revisito ao ler “dias medidos em xícaras de café” de Gabriele Rosa. escritora poeta dramaturga que usa o artifício da sedução onde todas as palavras parecem erotizar a imaginação das leitoras e leitores através das brincadeiras sonoras, respiros e pausas abruptas com que trabalha os ritmos das narrativas poéticas. num duelo entre versos mais diretos e por assim dizer populares como quem escreve num diário
“estou em chamas
dois stories e treze foguinhos recebidos”
Rosa nos faz caminhar pela casa com a xícara de café nas mãos espalhando a fumaça pelo lar e na outra mão o livro que guia os olhos em suas prosas poéticas trabalhadas na dedicação e disciplina de quem lapida o que é bruto.
teus poemas nos despem nos vestindo da vertigem de uma prosa virtual onde, contradizendo o poema de Lucas Guimaraens, de perto todo mundo é curva. na imaginação tudo se torna sensual onde gozamos o leite derramado em pleno vapor que embaça as telas.
o fluxo da água que irriga o solo que brota a flor. a continuidade da rota das palavras que não nos deixam fugir dos signos. é a luz que se apaga após a ventania que faz a chuva dançar e tirar faísca dos fios.
é preciso movimentar os olhos como quem risca o fósforo pra ascender o fogo que irá ferver a água.
e ela escorre pelos grãos moídos torrados que preenche a xícara num tom negro que se mistura à escuridão dessa noite que não tem mais fim…
pois contradizendo Torquato Neto
todas as ruas e poemas sempre terão um pouco de nós
às vezes em nós jaz um vazio desmedido que só a solitude do café pode nos pôr a observar
é quando todo passado se transfaz em poema
Uma breve prosa
Vitor Miranda: Rosa, citei aqui contradizendo o poeta filósofo Lucas Guimaraens. me diga: de perto todo mundo é pixel?
Gabriele Rosa: entre telas há muito pixel pra pouca gente, mas de perto, nem por um picossegundo: todo mundo é corpo, e isto é tanto, tudo.
VM: ah Torquato! te cito sempre, pois teus versos me excitam!
“Meu pobre coração não vale nada
Pelas três da madrugada
Toda palavra calada
Dessa rua da cidade
Que não tem mais fim”
saímos da virtualidade para adentrar na geografia da mais bela cidade abandonada. os poetas são das cidades ou as cidades são dos poetas? essa espécie de amizade virtual com algo que não se há contato por inteiro. me fale sobre a cidade que há em você quando ao delírio da cafeína.
GR: os poetas só habitam as margens e caminham com suas percepções expandidas pela linha tênue e cortante da simultaneidade do aquiagora, talvez, as cidades sejam monóculos de estilhaços que habitam os poetas, encruzas de caos e cosmos; isto é uma hipótese, ou não.
a cidade que me habita é uma paisagem de ruídos intensos, fugidios, imagens desfocadas e delicadamente ferozes. é deslumbrante, noturna e amorosa.
VM: você é uma escritora dos processos de estudos. da academia ao CLIPE e as pesquisas. quero saber da Rosa Gabriele empírica. nos conte do empirismo que há em “Dias medidos em xícara de café”. se é que há essa distinção entre estudo e vivência. será que a vida é uma coisa só?
GR: os primeiros poemas do dias medidos em xícaras de café foram escritos durante o período de distanciamento físico e social, momento inicial e crítico da pandemia de Covid-19. não havia vacina, tampouco previsão de retorno à vida dita “normal” – não há retorno depois de aproximadamente 707 mil mortos, ainda hoje, sinto muito pela falta de enlutamento coletivo, pelo horror das políticas públicas de esquecimento – comigo, havia uma casa que eu não reconhecia, pulsão de vida enlouquecedora, o medo de ficar doente e com sequelas, o trabalho entre muitas telas infinitas, 3 ou 4 horas de sono por noite, na maior parte das vezes por dia, muitos livros e cafés expressos, a intuição astuta de historiadora e meu olhar aguçado e simultâneo para todas as coisas ao meu redor. assim, caminhou o livro: como experimento, com a vida virada do avesso, minha obsessão em registrar o tempo com palavras e experiências táteis. eu percebo e experiencio a vida como uma simultaneidade de eventos, coisas e relações. meus processos de criação são vivamente imersivos, estudo e vivência se encruzam em múltiplos caminhos, são astrolábios cotidianos. finquei meus pés no assombro que foi viver (com privilégios, também precarizações) um espaço-tempo de angústias, solidão e exaustivos (não menos deliciosos) experimentos: da palavra, do corpo e da poesia. sendo esta última, incontornável.
______________
Vitor Miranda é poeta e contista autor de 6 livros publicados com destaque para os dois últimos: Exátomos e O que a gente não faz para vender um livro?
é poeta performer e letrista na Banda da Portaria e tem parcerias musicais com artistas como Alice Ruiz, Rubi, Heron Coelho, João Sobral, Luz Marina, Vange Milliet, João Mantovani, Touché, entre outros.
é agitador cultural e criador do Movimento Neomarginal e conduz o programa de entrevistas Prosa com Poeta.