Aguaceiro #23 Pelo direito de existir e ser mulher: um corpo político
advertência: pense em teatro de rua.
Nesta cena, há várias mulheres vestidas com seus melhores trajes. Uma delas toca triângulo como badaladas de sino que indicam o tempo da caminhada pelo espaço, até que outra levanta uma rosa amarela, o sino para, e todas param em diferentes níveis: de pé, agachadas ou sentadas no chão.
A mulher da rosa amarela é uma cigana. Ela devolve a rosa ao cabelo e se dirige ao público ao redor.
Cigana (expõe a palma): “observe duas pequenas linhas entrecortadas nesta mão” (aponta com o indicador da mão direita a mão esquerda e sorri de canto). “Elas afirmam, sem palavras: fascistas não passarão!”
Após a sua fala, as outras expõem palmas e punhos intercalados.
– A arte da edição é de @vitoriamorao
Vitória Morão – Artista visual e professora rondoniense, atuando desde 2019 com artes comerciais. Tem inspiração no fantástico, sonhos e ludicidades da cultura nortista.
Sem título (2020).
“Triste, louca ou má
Será qualificada ela
Quem recusar”
Triste, Louca ou Má – Francisco, el Hombre
MULHER
a solidão necessária para se aproximar do outro, não,
da outra. para se enxergar e pôr no papel, melhor,
na folha, para que uma mulher passe os olhos, digo,
a visão, sobre todo o meu corpo, perdão, minha
matéria e substância, e possa ler nas entrelinhas e linhas
de expressão, nas marcas, não de roupa, mas de tempo,
droga, da idade, todas elas inscritas na minha pele,
um discurso, não, palestra, sobre o ser nós e o ser eu,
sobre a coletividade impressa na indivídua; sujeitas
subjetivas não subordinadas.
todo o meu escrito é mulher, ou melhor, toda a minha
escrita é mulher, pra mulher, de mulher, em mulher,
mesmo que não se saiba o que é. essas letras são
mulheres, a tinta impressa será mulher, o toque no
teclado foi mulher, os olhos que lêem são mulheres.
tudo que sai de mim se esvai pra preencher nós. mulher.
minha dor é mulher. minha amor é mulher. minha pensar
é mulher. minha escrever, também mulher. minha verbo
é verba que sustenta o ser mulher, a poesia nada poética
dessa linharada escrita por uma mulher que não sabe
fazer poesia mas sente a poesia na carne. e sabe quem
é, e é mulher, visível, saída da terra enterrada, saída
da casa trancada, saída da sombra.
e se perguntarem se importa ser mulher eu digo
sou
e se perguntarem o que é mulher eu respondo
sou
e se mandarem calar a mulher eu grito
sou
e saio mulher,
de mãos dadas com outra.
Coelho, Thalita. Terra Molhada. São Paulo, Patuá, 2018, p. 17 e 18.
Sam Nina (Manaus/Amazônia), poeta e designer.
@_samnina
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Construção
Não quero ser compreendida
Tão pouco notada.
Quero ser respeitada
Viver meus versos,
Vestir minhas rimas
Sem medo
Sem amarras
Não me limite!
Não me defina!
Sou um amontoado de poemas em construção.
Maria, Nina. A flor da Pele. Bahia, Santo Estêvão, 2019.
Eriveth Teixeira (Maranhão) é pegadoga.
@erivethteixeira
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Redenção
quando o conflito tornou-se guerra
e o diferente inimigo?
quando Deus tornou-se sagrado
e a civilização masculina?
quando o mito tornou-se profano
e a mulher alada?
despe a ti
simples servo
vem voar
comigo
Camila Martins (São Paulo/São Paulo) é socióloga e jornalista.
@camismartins
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“Bato palmas para as travestis que lutam para existir
E a cada dia conquistar o seu direito de viver e brilhar”
Mulher – Linn da Quebrada
Mulher
Daquela !
Da quebrada
Do livre
Sentida
De um jeito
Sujeito ?
SUJEITA!!
Sem se sujeitar
Pelas travas de meu passado que não puderam se colocar.
Pelas irmãs que amargam na periferia pelo direito de hormonizar
Mulher?
Sim, mulherão.
Aquela do falo que tira sua respiração
Não vai entrar no banheiro ?
Quem foi disse que não ?
Aquendar ?
Tá olhando demais
Cuidado para não se apaixonar.
Mulher
Mulherão
Deixa de bobeira.
Ser travesti não é brincadeira
Manuela (Rio de Janeiro/Minas Gerais) é professora e pedagoga.
@animus_carpe_diem
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Eles dizem que
o mundo lhes pertence
Foram criados à imagem
E semelhança e nós
Outres apenas de um lado:
Dizem que não temos nome
Na língua que inventaram
Não temos lugar
Mas queimamos e queimamos
Como bruxas, como cidades
Como florestas: a vida aqui resiste
E floresce uma nova língua
Rivka Ramos é médique, tradutore e poeta.
@bruxe_ciborgue
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“O deserto que atravessei
Ninguém me viu passar
Estranha e só
Nem pude ver
Que o céu é maior”
Catedral – Zélia Ducan
Escrever na tua pele
A paz alcançar céus em meio aos teus detalhes
Dividir noites de suar
Avançar em direções que dão medo, pois não há garantias
Cavar um buraco na frente da nossa casa e encontrar sonhos esquecidos
E não renunciar a coragem
E seguir olhando nos olhos
Abrindo mão de verdade se purificando com cada desejo
Aventura nas curvas das tuas pintas
Eu já sei que tudo aqui toca em seus sentidos mais livres que apenas querer
Agora eu sou mais eu, porque contigo é possível não se deixar ir embora
Pra amar.
Thamires Gambôa (Porto Alegre/Rio Grande do Sul) é poeta.
@g.amboaaa
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“Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim cantar”
Mulher do fim do mundo – Elza Soares
hoje, eu não vou morrer
estão construindo ilhas de bonecas quebradas. objetificam nossos corpos. sexualizam nossa existência. não foi por amor, nem por uma “paixão forte”, tampouco por honra. lágrimas geradas no ventre. dores fincadas nas raízes. devoradas desde a infância:
faca, foice, canivete. arma de fogo. tesoura, machado, enxada. perfurações diversas. rostos esfacelados. estrangulamento. estupro. agressões, abusos, assédios, torturas, mutilações, espancamentos: morte. crime de ódio. corpos destituídos de dor. desenlutados. a cada dois minutos uma de nós é agredida. a cada sete horas, morremos. engrenagem perversa. corpos fraturados. engasgo cotidiano: quinto lugar no ranking mundial de feminicídio, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas.
romper com os silêncios que nos esmagam. caminhar juntas, visibilizar nossas fissuras. eu acredito que a cada dois minutos mulheres criarão redes de afeto. todes corpos femininos. repactuaremos com a vida. descobriremos que o mundo é presença e cuidado. abraçaremos a latinidade. passabilidades derrubadas. assimetrias sociais reduzidas. lutas diárias vozes reunidas nos quadris. desmontaremos estereótipos. patriarcado e capitalismo em xeque. juntes colapsamos a engrenagem perversa. travessias decoloniais. caminhos abertos. energias ancoradas na terra. diversos sagrados reunidos, respeitados. sob nossos pés, Latinoamérica. invocamos nossas ancestrais. nas nossas mãos a chave da reexistência, dos passados. desenterrar memórias. cavar futuros. desaprender sintomas. gestar substratos profundos, plantados nos sonhos. cresceremos rizoma. desnaturalizamos os papéis: “na embriogênese da genitália: todo mundo teve vulva”.
Gabriele Rosa (Rio de Janeiro) é historiadora e dramaturga
@__gabrielerosa
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Apesar das dúvidas, seguirei firme
Apesar dos caminhos cortados, avante
Apesar de tudo que há contra a minha existência, darei pulos de alegria
É uma forte corrente em direção contrária ao nosso crescimento
Então criamos raizes
Apesar dos medos, somos o sexo forte
Dentro da nossa alma somos luminosas
E sobre as dúvidas ao nosso respeito, colocamos por cima a magnitude das nossas riquezas.
Clara Nascimento (Bahia/Pará) é musicita e poeta.
@claraanascimentto
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“Sou mulher, sou dona do meu corpo
E da minha vontade
Mulheres – Doralyce
Outra Mulher
Meu corpo que sangra
Meu corpo que ama
Meu corpo mulher cis-mado
De tantos rótulos
De tantas fobias
De tantas manias,
De tantos toques gostosos
De tantos beijos melados
De tantos não e de tantos sim
Meu corpo mulher cis-temático
De tantos compromissos
De tantos quereres negados
E De tantos realizados
De tantos afetos compartilhados
E de tantos renegados
Meu corpo mulher cis-udo, voluptuoso, charmoso, gordo
De tantos quereres, meu corpo mulher quis outra mulher, outra mulher cis, outra mulher trans.
Meu corpo mulher quis outra mulher preta.
Adriele do Carmo (Salvador/Bahia) é poeta, produtora cultural e comunicadora.
@adrieledocarmo_
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Desarticulações
Desloco falanges
quebro um braço
Mas (não escrevo)
O corpo diz coisas que não andam
Rastejo
Engatinho
Cavalgo
deslizo o corpo
entre limites de linhas
eu danço
encaro
um mar de ONDAS GIGANTES
o corpo geme
(silêncio)
O corpo não fala
Uma frase
A não ser
Desejo.
Priscila Kerche (Mato Grosso/São Paulo) é poeta e répoter.
@priscilakerche
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“Abafaram nossa voz
Mas esqueceram de que não estamos sós
Essa vai, pra todas as mulheres
Marianas, índias, brancas, negras, pardas, indianas
Essa vai pra você que sentiu aí no peito
O quanto é essencial ter no mínimo respeito
Essa dor é secular e em algum momento há de curar
Diga sim, para o fim, de uma era irracional, patriarcal
[…]
Então eu canto, pra que em todo canto, encanto de ser livre
De falar, possa chegar não mais calar”
Pra todas as mulheres – Mariana Nolasco
Mulher, mulheres
A mulher do Amazonas, Pará
Bahia, São Paulo, Maranhão,
A mulher Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro,
Rio grande do Sul, Mato Grosso,
Mulheres do Brasil, cidadãs de si.
A mulher indígena, negra, branca
Parda, amarela
Lisa, cacheada, crespa, careca
Em sua pluridiversidade.
A mulher hétero, lésbica, pan e bissexual,
A mulher cis, trans, não-binário
Livre para desejar e ser quem se é.
A mulher dona de si
Escritora, produtora, designer,
Ativista, pedagoga, jornalista,
Socióloga, médica, tradutora,
Pesquisadora, poeta,
Dramaturga, historiadora,
Musicista, repórter,
Comunicadora, roteirista
Entrevistadora, senadora,
Advogada, empresária
Reverencia aquelas
Que vieram antes
As ancestrais
Aquelas que abriram caminhos,
Caminharam e lutaram
Arderam, morreram
Por serem mulheres.
A mulher do passado,
Presente, futuro
Juntas, unas
Construindo universos possíveis
Para ser mulher.
Tantas, tamanhas, diversas
Camilas, Manuelas, Ninas,
Thamires, Eriveths, Gabrieles,
Claras, Priscilas, Adrieles,
Sorayas e Rivkas
Que não se curvaram
E não se curvarão.
Seguirão juntas
ousando viver e ser mulheres
Travando batalhas,
Conquistando espaços, lugares
Plantando e colhendo flores, amores
Gerando e transformando vidas
Curtindo, vivendo
Sendo livres.
Pelo direito de existir e ser mulher
Um corpo político.
Nina Maria (Santo Estêvão/Bahia) é graduanda em Letras, poeta, editora, curadora, entrevistadora, roteirista e produtora cultural.
@poeticamenteeu_