“Pequena antologia pessoal” de Noélia Ribeiro – Por Andri Carvão
“A coluna Traça de Livro:…impressões de leitura… com 28 textos publicados de 16 de março de 2022 a 31 de agosto de 2023, depois de ter cumprido o papel de apresentar minhas leituras, algumas delas inusitadas, de autoras e autores de diversas nacionalidades, cede lugar para a coluna Escambo Literário & outras trocas, onde compartilho as minhas impressões de leitura da produção de autoras e autores contemporâneos da literatura independente.
Vida longa à revista Ruído Manifesto e aos seus leitores!”.
Andri Carvão, formado em Letras pela Universidade de São Paulo, é autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva, O mundo gira até ficar jiraiya e A poesia invisível: 30 anos de poesia (1993-2023), dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e mantém a coluna de impressões de leitura na revista Ruído Manifesto desde março de 2022.
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Pequena antologia pessoal | Noélia Ribeiro
Noélia Ribeiro é a Nonô citada na canção Travessia do Eixão, gravada no disco Uma outra estação (1997), último álbum de estúdio da banda brasiliense Legião Urbana. Pernambucana de nascimento, a poeta Noélia Ribeiro se considera carioca de coração e é radicada há anos em Brasília. A poeta apresenta a live A fim de poesia no Instagram.
A primeira vez que tive contato com Noélia Ribeiro foi durante a pandemia quando, através de uma postagem por brincadeira no Facebook –“só faço live se for bebo”–, ela comentou que a ideia era muito boa. Daí então surgiu o Simpósio de Poetas Bêbadxs, projeto o qual Nonô foi a madrinha de honra. O Simpósio foi uma live que apresentou 127 poetas de todo o Brasil e gerou a Antologia Simpósio de Poetas Bêbadxs (Desconcertos, 2021) com 86 participantes. Desde então, estreitamos nossa amizade através da poesia.
Sendo assim, não vacilei em enviar via WhatsApp e depois por e-mail três questões que me martelaram a cabeça durante a leitura de seu mais recente lançamento, Pequena antologia pessoal.
1. Como surgiu a ideia de se publicar a Pequena antologia pessoal?
“Durante a pandemia, participei, aos sábados, de um sarau virtual chamado Sarau da Invencionática, com poetas de vários estados do Brasil. Após o encerramento dos encontros, a poeta Manuela Dipp idealizou o Selo Invencionática e passou a coordená-lo na Editora Bestiário. Foi então que recebi o convite para lançar um novo livro na Feira do Livro de Porto Alegre, onde moram Manuela e o editor Roberto Prym. Acontece que eu havia publicado o Assim não vale no ano passado e não tinha material suficiente para um livro de poemas. Dessa forma, tomamos a decisão de organizar uma seleção de poemas de meus livros Atarantada (Verbis, 2009), Escalafobética (Vidráguas, 2015), Espevitada (Penalux, 2017) e Assim não vale (Arribaçã, 2022), além de alguns que eu havia escrito recentemente.”
2. Rua 8 e Rua do Lima mencionadas no poema homônimo, Rua 8, e em Os sapotis remetem a quais memórias da poeta?
“Rua 8 remete ao Café da Rua 8, um lugar que costumava frequentar nos anos 2000, que se localizava na 408 Norte. O poema fala de um romance. Os sapotis é um poema que se refere à infância, seus medos e ausências. Quando criança, morei na Rua do Lima, em Recife, onde nasci. Lá conheci o sapoti, minha fruta predileta.”
3. No poema Movie a poeta se projeta no metafilme A rosa púrpura do Cairo de Woody Allen e em Todos na tumba com Bukowski você dialoga com o controverso autor americano. Ambos são artistas singulares e controversos por conta de ações e pensamentos dos quais são vítimas de cancelamento em tempos de redes sociais. Isso mostra que você separa a obra do artista da pessoa física. Como você avalia a questão?
“Na maioria das vezes, consigo separar a obra da pessoa. Vi todos os filmes de Woody Allen e o acho genial. A Rosa Púrpura do Cairo me tocou profundamente. Não conseguiria, mesmo decepcionada, deixar de reconhecer sua genialidade nem parar de assistir a seus filmes. O poema Movie tem como pano de fundo o fim de uma relação. Com Bukowski foi diferente. Tinha por seus poemas interesse e desprezo, até que comprei um livro que mudou minha opinião a respeito do poeta. O poema Todos na tumba com Bukowski dialoga com um poema desse livro: Vá para a tumba limpinho. Essa questão de cancelamento e da relação entre a obra do artista e a pessoa física depende de como cada um reage. Se a pessoa perde a admiração, acabou.”
Da autora Noélia Ribeiro, li Escalafobética (Vidráguas, 2015), Espevitada (Penalux, 2017), Assim não vale (Arribaçã, 2017) e a sua Pequena antologia pessoal (Bestiário, 2023), sendo este, o motivo destas impressões de leitura.
O livro é dividido em 6 partes, sendo as 4 primeiras denominadas pelos títulos de seus livros publicados até o momento, exceto Expectativa (1982), publicação que marca a sua participação no cenário da poesia marginal da Geração Mimeógrafo. Eis a divisão de sua Pequena antologia pessoal: Atarantada, Escalafobética, Espevitada, Assim não vale, Piripaques e Inéditos.
De Atarantada a poeta selecionou 8 poemas, 10 de Escalafobética, 10 de Espevitada e 11 de Assim não vale.
Mas vamos começar pelo fim, só para subverter a ordem vigente.
Em Piripaques, Nonô mantém a tradição de apresentar uma sequência de micropoemas que nos remetem à uma prática que remonta tanto à poesia marginal da geração anterior a sua, vide anos 60 e 70, como ao poema pílula ou poema piada praticado por Oswald de Andrade.
Elejo uma trinca:
“II.
resolvamos o dilema:
fique com a razão
que eu fico com o poema” (um exemplo de metapoema)
“V.
incapaz
de dirigir a vida,
voltei pra casa
a pé” (aqui temos o recurso da ambiguidade)
“VIII.
minha língua barroca
não cabe em um beijo
meia-boca” (outra marca da poeta é a presença do erotismo)
Mas os micropoemas também aparecem ao longo do livro como em Fim de caso: “Quem tocou a Marcha Fúnebre / em pleno domingo de Carnaval?”, em Achado: “Procuro-te no palheiro / e espeto o dedo enamorado” e em Vileza, uma bela amostra de sua sutileza: “Contra a crueldade / explícita uso / a doçura dissimulada // (sou ainda mais cruel)”.
Como se vê, o poder de concisão é marca registrada da poética de Noélia Ribeiro – da difícil arte de dizer muito com poucas palavras. Seus jogos de palavras, trocadilhos, ambiguidades são todos recursos poéticos que fazem ecos à poesia praticada por seus pares como Chacal, Cacaso, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Ledusha. Poesia que conheci nos anos 90 graças a Agenda da Tribo.
Geração 80 – década perdida – geração do desbunde.
Ritos de passagem de duas décadas de Ditadura rumo à Abertura.
Noélia abre o livro – ‘inicia o rito’ –, com Dever de casa em meio aos afazeres do dia a dia e ao chamado da poesia. “Como terminar o poema / se esta tristeza demora?” (Como?) O metapoema é uma característica que a poeta compartilha entre sua geração e com os poetas de gerações posteriores como uma espécie de legado. “Essa tristeza de ausência / é razão maior da minha poesia / de versos imperfeitos.” (Mal da angústia) Metapoema – simplicidade – modéstia. “Para fazer um poema, o poeta escava palavras / nas fissuras.” (Nenhuma poesia no real) e ainda: “Os sapotis nefelibatas me ensinaram a escrever poemas…” (Os sapotis)
Ao longo do livro, observamos o recurso da anáfora como em Medo, iniciando cada uma das cinco estrofes com o verso “Medo de ficar assim:”. Em Platonices a poeta abre a primeira estrofe com o verso “O menu / oferece um homem” e a segunda, com uma pequena variação, “O menu / que esse homem / oferece”. A repetição através da anáfora, quando bem urdida, assim como o mote e o refrão, traz unidade para o corpo do poema, como alicerce e base sólida para a arquitetura da composição.
Outro aspecto interessante é a adição de estrangeirismos com certa ironia: “avec moi”, “my man (…) uma woman / uma woman”, “chef (…) al dente”, “WiFi”, “download”. E raros neologismos: “saladespero” e “escuridade” (Movie) e desútil (Depois do café).
Noélia não tem medo de se expor, de fazer alusão a, ou citação pura e simples como forma de homenagem “sobre o colchão lilás” (Veleidades) que compartilha com Hilda Hilst, Nicolas Behr, Carlos (Drummond?), Chico Buarque, Ella Fitzgerald, Zeca (Pagodinho ou Baleiro?). Há ainda uma infinidade de nomes povoando seus sonhos e pensamentos, ou seja, seus poemas: Platão, Woody Allen, Fellini, Yoko Ono, Thiago Petit, William Shakespeare, Branca de Neve, Paulo Henriques Britto, Deus, Buda, seu pai, Neil Armstrong, Pablo Picasso, Charles Bukowski, Sophia de Mello Breyner Andresen, Ana Cristina César, The Rolling Stones, Bill Murray, Vênus/Afrodite, Marte, Sísifo, Botticelli, Cora (Coralina?), Quimera. A poeta Noélia Ribeiro é senhora de si, pois seu intelecto é agregador e por isso não faz distinção.
A sensualidade através da insinuação do erótico e não do explícito do pornográfico transparece em diversos momentos “em seu colchão lilás”. A descoberta da sexualidade é registrada nos versos “A menina que me habita (…) arrebita sorrindo” (Rua 8); as mulheres loucas, doidas varridas são bem representadas “Ao beijar a boca / de seus paladinos / elas choram à míngua / de outra língua / que umedeça toda parte.” (Elas); e, por fim, só para dar água na boca e deixar um gostinho de quero mais “Pálida, toco entre as coxas com dedos necrófilos. / Ressuscito um gemido. Com o bico do seio, / tatuo no esquife Afrodite sobre a concha, nua. // Matam-me todos os dias. / E o gozo me perpetua.” (Afrodite)
Para concluir, pois já me demoro por não ser mestre da concisão, não posso deixar de mencionar dois exemplos de poemas espelhados. No primeiro caso, temos duas maneiras de se enxergar o crepúsculo da vida.
“A folha de rosto / do caderno / de memórias / limpa os olhos / borrados / de lamentar / a paixão / a perfídia / à solitária / meia-luz / sem sono / para finalizar / o epílogo / triste e vão / de Cabíria / de enlutada / Yoko Ono.” (Epílogo de mim) e “Sussurra o mar ao seu / ouvido o epílogo da vida.” (Domingo de praia).
E no segundo caso, a preocupação social em escala mundial localiza a poeta como cidadã do mundo.
“No barco / olhares longínquos silenciam / escombros, histórias para contar. // Uma mulher cantarola / para adormecer o filho e o mar.” (Refugiados) e “O peixe que comprei para o jantar / embrulharam numa folha de jornal com a foto / de mulheres afegãs no aeroporto de Cabul, / abaixo a foto de mulheres indígenas em Brasília.” (Fome de quê?).
Anote aí a receita de Nonô para se fazer um bom poema: uma pitada de humor, uma colher de erotismo, regado com uma dose de ativismo no ponto certo, pois a poeta faz literatura e não panfleto político.
Esta Pequena antologia pessoal de Noélia Ribeiro traça um painel ou um breve panorama do fazer poético dessa poeta brasileira, latino-americana, e serve como porta de entrada para se aventurar em sua obra. Nonô é conhecida por sua generosidade tanto com relação a autores de sua geração como com aqueles que sequer publicaram fora das redes. Quem presenciou o sorriso de Nonô dançando um forró com Cel Bentin na Patuscada, não esquece jamais.
RIBEIRO, Noélia, Pequena antologia pessoal, 78 p., Porto Alegre, RS : selo Invencionática, ed. Bestiário, 2023.