Plantações poéticas-políticas de Ilza Carla em dois tempos
A poeta entrevistada desse mês, Ilza Carla Reis, será também a poeta do mês de agosto. Isso se deve à necessidade que sentimos em dividir sua entrevista em duas partes para melhor apreciarmos a potência e poesia contidas em cada texto que nos escreve a cada pergunta lançada. Ilza nos presenteia com muitas palavras e nos fala, entre tantas coisas, sobre os tempos da criação, das leituras e das pausas. Ela é tanta, em si, nos seus, na poética que se derrama do seu (re)existir mulher. Ela é abundância que transborda em nós e nos nossos sentidos e, também por isso, partilharemos/colheremos da sua força escrita em duas edições, para que você que nos acompanha também seja tocada por essa força mulher que diz e cria.
Nascida em Euclides da Cunha, Ilza Carla Reis se divide e se multiplica entre as funções mãe, escritora, esposa, professora universitária, integrante dos coletivos Confraria Poética Feminina (Bahia) e Mulherio das Letras e doutoranda em Crítica Cultural que pesquisa as produções artístico-literárias de autoras/es contemporâneas/os, radicadas/os no sertão conselheirista, cujos textos plantam a semente da reexistência sertaneja. É sobre tudo isso, nessa entrevista, que ela também nos fala.
ER – Como foi o seu contato inicial com a poesia? Como ela se interliga a outros processos criativos e acadêmicos, em suas vivências?
Não há como responder a essa pergunta sem voltar à minha infância e juventude. Eu considero que a poesia entrou na minha vida tardiamente, pelo menos se nos referirmos à poesia materializada pela palavra. Acho muito bonito sempre que ouço relatos de escritoras e escritores sobre suas experiências com os livros e com a literatura desde a infância. Eu, no entanto, não tive esse privilégio. Por ser de uma família humilde, não havia acesso ao livro e à literatura, tanto pelas poucas condições financeiras quanto pelo desconhecimento de sua importância. As prioridades eram outras. Já era um esforço enorme comprar o material escolar para quatro filhos. A história da minha família, aliás, é semelhante à de milhares de outras. A minha mãe frequentou muito pouco a escola, boa parte, inclusive, depois de ter tido seus quatro filhos. Meu pai aprendeu minimamente a assinar o nome, embora fosse muito sábio e soubesse se virar muito com as contas de cabeça. Nisso, ninguém passava o velho para trás.
Na escola, não tenho lembranças de contato com livros. Lembro-me que havia uma biblioteca enorme, cheia de livros, mas não éramos estimulados a frequentá-la. Quero crer que hoje seja diferente. Afinal, como diz o sábio Rubem Alves, não adianta ter a faca e o queijo, se não temos fome. Então, na minha adolescência, não me recordo, infelizmente, de ter lido livros que tivessem me arrebatado, porque o habitual eram as leituras para as provas de português. Poesia, então, só me chegava pelo livro didático, em fragmentos, muitas vezes, quando dos estudos das escolas literárias. E mesmo nessas condições, lembro-me quando li pela primeira vez os poemas O bicho, de Manuel Bandeira, e Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles. Agora… se pensarmos na poesia que brota da vida, essa, sim, sempre me arrudiou, como escrevi em “Páginas vivas”, publicado no meu livro Poemeadura, do qual me atrevo a compartilhar três estrofes com vocês:
[…]
Hoje, tenho consciência
de que, mesmo não tendo em casa
uma estante cheia de livros,
eu os lia aos bocados
nos lábios e nos olhos
dos que me cercavam
Nos lábios e nos olhos
da minha mãe
do meu pai
dos meus avós
da minha professorinha
do meu bichinho de estimação…
[…]
Li muitos poemas…
Os que jorravam feito correnteza daqueles brilhantes olhos!
Hoje, continuo lendo de tudo: livros, olhos e lábios!
ER – Enquanto mulher do semiárido que escreve, pesquisa, estuda e cria, quais desafios você enfrentou – ou ainda enfrenta – para reconhecer-se como poeta/ pesquisadora/ acadêmica e expor suas produções?
Todas sabemos que o nosso reconhecimento enquanto escritora, tanto por nós mesmas quanto pelos outros, é algo muito recente e ainda um processo em construção, graças a muitas desbravadoras que vieram antes de nós. Até pouco tempo, a escrita literária era muito restrita aos homens. Melhor dizendo, os espaços de divulgação e de reconhecimento eram restritos, porque escrever nós sempre o fizemos. Eu entendo a escrita como um ato de semear. Assim, quanto mais terreno fértil encontramos, mais nos encorajamos a lançar sementes. Então, hoje penso que, se na minha juventude, tivesse encontrado terreno fértil, a minha escrita não teria sido abafada, guardada nos cadernos e nas gavetas, ou até descartada, como fiz tantas vezes. Ainda mais, estando no sertão, no interior da Bahia; como não via outras mulheres iguais a mim escrevendo e publicando, como poderia acreditar ser possível? Mesmo tendo lido e estudado, nos anos de graduação em Letras, literaturas escritas por mulheres (claro, ainda muito pouco, proporcionalmente àquelas escritas por homens), tratava-se de mulheres muito distantes de mim. Então, acreditava que o escrevia não interessava a ninguém, não tinha importância. Hoje, fico feliz ao ver outras meninas e mulheres, sobretudo quando sou convidada a ir às escolas, encorajadas a escrever e publicar. É a tal da representatividade de que tanto falamos.
Porém, ainda são muitos os desafios impostos pela nossa sociedade, alicerçada nos valores do patriarcado e do machismo, que ainda ditam os lugares sociais para homens e mulheres. Quando não explícita, implicitamente há no inconsciente coletivo a ideia de que à mulher não é dado o direito de dedicar tempo à escrita literária, pois somos educadas e cobradas, até por nós mesmas, para dar conta dos afazeres da casa, do cuidado com os filhos, além do exercício da profissão, uma conquista enorme, mas que se somou a todas as outras tarefas. Isso tem mudado, felizmente, mas muito lentamente. Eu posso me dizer privilegiada por ter um marido que é meu parceiro, não alguém que “ajuda”, apenas, mas que divide as tarefas comigo. Vejo, inclusive, o quanto isso repercute na educação dos meus filhos (tenho três meninos), que já refletem criticamente as consequências do machismo e têm no pai uma boa referência. Vejam que falar desse assunto implica em falar da vida, da nossa, pois toda essa discussão nos afeta cotidianamente.
Em síntese, posso afirmar que não foi fácil, para mim, reconhecer-me nesse lugar de poeta/escritora. Foi preciso que os outros o dissessem de mim e isso só ocorreu quando da publicação do meu primeiro livro, o que também precisa ser problematizado, pois não somos escritoras apenas se publicarmos um livro. Escrever é mais do que isso!
Confesso que ainda é um enorme desafio dizer-me e sentir-me escritora. Sinceramente, a escrita é para mim, hoje, mais uma realização pessoal do que uma necessidade de reconhecimento. Até porque, como afirmou o poeta Ferreira Gullar, “a arte existe porque a vida não basta!”.
ER – A partir das suas experiências literárias como você analisa a inclusão da mulher artista em espaços e eventos culturais?
Ah… eu gostaria de responder a essa pergunta com mais otimismo. Pode não parecer, mas é ainda tão difícil… E se já é difícil para as mulheres, em geral, para nós, artistas e escritoras do semiárido baiano, é ainda mais, por, no mínimo, duas razões. A primeira, por estarmos geograficamente distantes dos grandes centros, onde se concentram os espaços e eventos culturais, o que nos limita muito. Isso ficou claro para mim durante a pandemia, quando tudo tinha de acontecer virtualmente. Nesse período, participei de diversas atividades, eventos, lives, estreitei laços com outras escritoras e escritores, tive a chance de participar, inclusive, de eventos transmitidos fora do país. Quando tudo voltou ao presencial (graças a Deus, porque estávamos sentindo muita falta), a distância passou a ser, novamente, um obstáculo. Muitos escritores têm de se mudar pra capitais, sobretudo Rio e São Paulo, se quiserem ter maiores oportunidades. Eu não quero isso. Eu quero que a arte e a literatura que fazemos aqui no Nordeste, no sertão e no semiárido, tenha cada vez mais espaço e reconhecimento tanto aqui quanto nas demais regiões do país. É isso que eu quero. Se durante séculos tivemos acesso quase que exclusivamente à arte e literatura de autoria masculina e das regiões sul e sudeste, agora, temos de lutar para que outras vozes e nuances tenham espaço. Felizmente, temos visto um movimento maior, nesse sentido, como as feiras literárias de Uauá e Canudos, assim como editoras independentes e outros eventos. Porém, se nós mulheres não estamos entre os que pensam e organizam os eventos, à frente de editoras e revistas literárias, por exemplo, há muito menos chance de os integrarmos.
A segunda razão diz respeito, ao menos para mim, às próprias limitações de ordem pessoal. Participar de feiras e eventos literários está sempre condicionado à escolhas e renúncias, especialmente para nós mulheres, mães, profissionais que não vivem de literatura e que, por isso, têm outras demandas. Como já mencionei na resposta anterior, ainda que não me digam que não devo, muitas vezes sou eu mesma que me nego essas possibilidades, resultado de uma construção histórico-ideológica que temos encarado de frente.
ER – Na nossa existência há sempre algo que nos move, balança nosso pensar e existir… O que move a sua produção artística? De onde ela vem?
Não tenho dúvidas de que o fato de ser mulher, mãe e nordestina e residir no interior, no sertão, marca minha escrita, porque muito do que sou foi forjado pelas experiências vividas nele e que habitam minhas memórias, onde me (des)construo, enquanto mulher, mãe, sertaneja e escritora. E, ao mesmo tempo em que esta é a minha aldeia, é também o mundo todo, como já dizia Fernando Pessoa. Isso me afeta tanto sobre como escrevo quanto sobre o que escrevo.
Quando o assunto é sobre o que escrevo, considero-me ainda mais afetada. Mesmo que, em muitos momentos, isso não se dê de forma explícita, o sertão, essa identidade sertaneja, me atravessa e à minha escrita, porque nela estão as minhas memórias e as experiências com o lugar e as pessoas que me cercam. Também não se trata de um passado, porque tudo é sempre um agora nas minhas memórias. Embora o que escrevamos parta do que somos, não se limita jamais a vivências individuais. Por isso que o que escrevemos é lido por outras pessoas, porque, de algum modo, essas experiências as atravessam também.
Eu diria também que minha escrita é um retrato do que meus olhos veem, meus ouvidos ouvem, meu coração sente. Então, posso dizer que o que me cerca me inspira, sejam as dores ou as alegrias, mas, de modo especial, as coisas mais simples do cotidiano. Diria, ainda, que minha escrita traduz um pouco do aqui (eu) e do acolá (outras pessoas, outros lugares).
ER – Há uma tendência dos grupos e vozes dominantes de colocarem as produções literárias e artísticas de autoras/es independentes como, apenas, amostras, enfeites ou elementos secundários, por vezes estereotipados, de um determinado contexto, que não merecem reconhecimento e valorização financeira. Você já viveu algo parecido? Se se sentir à vontade, compartilhe conosco sua experiência, para que juntas possamos refletir sobre possíveis caminhos de rompimento com esses padrões anuladores.
Embora não se diga explicitamente que não nos convidam ou não nos publicam por sermos mulheres, sabemos que isso ainda impera. Graças às lutas e movimentos engendrados pelas mulheres, além do fato de elas estarem à frente de coletivos e grupos que coordenam as feiras e eventos literários, a nossa presença tem aumentado. Me pergunto, contudo, se não seria por uma espécie de atendimento ao politicamente correto, sabe? Como se pensassem: tem que ter uma mesa com mulheres, com autoras negras, indígenas, LGBTs etc. Porém, o tratamento nem sempre é equitativo. Além disso, só ser convidada não basta. Para as mulheres que vivem ou desejam viver da escrita, é preciso um reconhecimento financeiro. Afinal, a arte é fruto do trabalho árduo e não somente da inspiração, tampouco apenas enfeite ou elemento secundário.
Enquanto professora e pesquisadora, vejo o quanto é importante ter mulheres propondo projetos, integrando equipes que coordenam eventos e feiras de arte, para que outras mulheres possam ocupar esses espaços e, quanto mais mulheres diversas estiverem neles, mais diversidade também teremos nos eventos e nos projetos, consequentemente (e não menos importante), mais literatura que represente e que fale dessa diversidade será produzida e (re)conhecida. Eu sei que esse discurso é tratado muitas vezes como “mimimi”, mas não é. Sei que temos muitos homens que abraçam essa luta, mas esse desafio é real. Infelizmente, ainda impera no imaginário coletivo que a escrita de mulheres é (somente) feminina ou que é feita apenas para as leitoras. A escrita de autoria feminina trata, sim, do universo feminino, das nossas dores e alegrias, por tanto tempo retratadas somente pelo ponto de vista masculino, mas agora contadas por nós e precisa ser lida por todos e todas. Porém, não é somente isso. Há uma diversidade enorme, muitas vezes estereotipada por puro desconhecimento. Por isso, é essencial que homens leiam mulheres. Inclusive porque acredito que, pela literatura, possamos vislumbrar uma sociedade menos machista e menos violenta contra as mulheres. Eu acredito que a palavra poética tem o poder de fazer pensar e sensibilizar para temas sensíveis e urgentes.
As palavras de Ilza são poesia mesmo quando prosa. A poesia em prosa de Ilza não romantiza a vida, mas nos leva a senti-la: vê-la, lê-la, ouvi-la, tocá-la, cheirá-la em suas superfícies e profundidades, em suas dores e alegrias, em seus contrários. Mas também nos leva a reflexões críticas apontando caminhos para mudanças necessárias. Atravessadas com sua correnteza em palavras, retrato de tudo que o sol toca, Ilza nos convida fascinantemente a olhar e recordar nossa própria trajetória com coragem e entusiasmo de continuar o fluxo. Além de uma entrevista, magia.
Por hoje, ficamos por aqui, reverberando suas palavras, mas mês que vem, novamente iremos reencontrá-las.
Bia Santos
Ilza Carla nos representa enquanto mulher, a forma como ela escreve e fala é perceptível a paixão que ela carrega em si.
Como aluna de uma das melhores professoras que tive, tenho que dizer que tenho muito orgulho dessa mulher guerreira e inspiradora. ❤️