Poemas, Canções, Reflexões: Entrevista com Bárbara Pontes
A poetisa entrevistada desse mês por nossas Escritas em Revoada é Bárbara Pontes, autora do livro de múltiplas linguagens “Foto Grafias: Retratos de mim” ¹, em que desnuda corpo e alma para nutrir os anseios de dizer-se, dizendo sobre o amor em suas mais diversas manifestações. Além de poeta, Bárbara é compositora, atriz, doutora e pesquisadora acadêmica sobre violência contra mulheres.
Para traçar novas rotas e transgredir fronteiras: Pontes. Mais que estruturas construídas para estabelecer a comunicação entre pontos apartados, como delimita acanhadamente o dicionário, em Bárbara, Pontes são elos que flutuam entre – com – a partir dos movimentos, sons, palavras, sentidos, ações/transgressões na força dos ventos que desafiam as carcaças do patriarcado, também pela comunhão das artes que provoca o caminhar. Como ela própria diz em seu poema Artesã ³:
Eu teço meus próprios sapatos
Trilho por caminhos pré-existentes buscando ser
resistente, resiliente, renitente
Tento não olhar pra trás.
Olhando adiante, sigamos para fazer as travessias das palavras de Bárbara.
ER – Como foi o seu contato inicial com a poesia? Como ela se interliga a outras artes e também à pesquisa acadêmica, em suas vivências?
Meu primeiro contato profundo com a poesia veio literalmente de uma relação de amor. Perceber o cotidiano transformado em versos me possibilitou olhar o mundo e a vida pela lente da poesia. Foi assim que arrisquei meus primeiros versos. Hoje, alguns deles foram sonorizados e viraram músicas, algumas disponibilizadas nas plataformas de stream no disco Instante do Encontro, em parceria com Renato Augusto. Parceria esta que nos trouxe o prêmio de terceiro lugar no Festival Edésio Santos da Canção em 2022. No que se refere ao diálogo com a pesquisa acadêmica, na confecção da tese construí um poema para cada uma das cinco mulheres que aceitaram contar suas histórias na pesquisa e abri cada capítulo com poemas, o que me possibilitou trazer leveza e fluidez para a escrita acadêmica.
ER – Enquanto mulher ribeirinha que escreve, atua, compõe, pesquisa e cria, quais desafios você enfrentou – ou ainda enfrenta – para reconhecer-se como poeta/ atriz / compositora/ multiartista e expor suas produções?
Penso que a primeira dificuldade é perceber-se como tal, se reconhecer e se autorizar a estar neste lugar de fazedora, criadora. É fato que nas relações sociais nós nos reconhecemos relacionalmente, a partir do olhar e do aval dos outros também e, nesta sociedade patriarcal e machista, há sempre um silenciamento de nossas vozes, um certo descrédito do que é dito por nós. Só me percebi escritora quando ouvi dos meus pares, escritores e escritoras que admiro, que eu era um deles, este foi o meu rito de passagem. As dificuldades enfrentadas a partir daí são inúmeras: a primeira delas é materializar o trabalho, depois vem a dificuldade de fazer a circulação da sua arte. Porque o intuito da criação é que ela alcance, toque as pessoas de alguma forma e, num país onde a grande maioria das pessoas não têm o hábito de ler e comprar livros e que a música ofertada nos grandes meios de comunicação é, em sua maioria, nos dias atuais, sem poesia há muitas limitações. As letras têm perdido o figurativo e se tornado cada vez mais literais, o que empobrece e desembeleza não só o texto, mas também o pensamento de quem consome esse tipo de música.
ER – A partir das suas experiências literárias e musicais como você analisa a inclusão da mulher artista em espaços e eventos culturais?
A complexidade dessa construção desigual é tamanha que, muitas vezes, nós mulheres não nos permitimos, ou sentimos insegurança neste lugar de criadora de discurso, de ter voz e ser ouvida, levada a sério, visto que há toda uma construção para descredibilizar a nossa fala. Acredito que há uma preocupação, por parte de alguns produtores e sobretudo produtoras, nesta inclusão de vozes e discursos femininos nos eventos. Com certeza esse processo surge através da nossa luta por igualdade, inserção e respeito em qualquer campo de atuação do cotidiano que, infelizmente, ainda se faz necessária e está longe da equidade almejada.
ER – Na nossa existência há sempre algo que nos move, balança nosso pensar e existir… O que move a sua produção artística? De onde ela vem?
O que move a minha produção é a minha inquietação interrogativa. A desconstrução de certezas e verdades absolutas, a possibilidade de transgressão e principalmente de um processo de cura de mim mesma. Um saber fazer com as minhas dores, desilusões, dissabores, tristezas, medos, fraquezas. Dizer é vômito, expurgo, é livramento. Mas também uma maneira de compartilhar a contemplação, a paz, a alegria, o amor e a poesia que há no olhar… Enfim, humanidades.
ER – Pensando nesses movimentos da própria existência e das palavras, para onde você deseja que vá a sua arte?
Para a calçada, para os muros, para canções, para livros, para as pessoas.
ER – Há uma tendência dos grupos e vozes dominantes de colocarem as produções literárias e artísticas de autoras/es locais como, apenas, amostras, enfeites ou elementos secundários, por vezes estereotipados, de um determinado contexto, que não merecem reconhecimento e valorização financeira. Você já viveu algo parecido? Se se sentir à vontade, compartilhe conosco sua experiência, para que juntas possamos refletir sobre possíveis caminhos de rompimento com esses padrões anuladores.
Essa questão de intitular nossos fazeres como locais é algo que também me causa incômodo. O que é local? Produção artística tem contorno de limitação geográfica? São questões que me faço. Ao meu ver, toda arte é global e merecedora de respeito. Infelizmente, temos uma cultura que trata o fazer artístico como algo do campo do divertimento e não do labor e, consequentemente o artista não é visto como trabalhador, principalmente o artista da comunidade que ainda não tem uma visibilidade maior. Pois, para os “grandes” artistas a remuneração pelo trabalho é algo inquestionável, mas, para muitos de nós que não conseguimos sobreviver através dos ganhos financeiros da nossa arte, parece que fazemos por lazer, diversão e que não há necessidade de remuneração. Sou totalmente contra essa perspectiva e, tenho buscado, onde posso, desconstruir essa visão equivocada a respeito dos trabalhadores das artes.
ER – O que você pensa acerca dos coletivos, confrarias, agrupamentos de mulheres artistas, das mais variadas linguagens, que investem em pesquisa/criação/produção/publicação coletiva, exclusivamente de mulheres? Você conhece algum(ns) desses coletivos de mulheres? Quais?
Penso que essa é uma importante estratégia de fortalecimento e combate ao patriarcado e às relações hierarquizadas de gênero, visto que uma das estratégias de dominação do feminino é a antiga tática de guerra: dividir para enfraquecer. Nós crescemos aprendendo a desconfiar e disputar umas com as outras e, o fortalecimento de uma mulher é, em um aspecto amplo, o fortalecimento do feminino. Desta forma faz-se necessário que nos agrupemos para romper com essa segregação interna e possamos enfrentar juntas, o que nos traz muito mais potência, as dificuldades e exclusões sociais. Existem inúmeros coletivos de mulheres em nossa região, com múltiplos enfoques: musicais, literários, do sagrado feminino, de dança. Porém, o único que experienciei aqui na região foi o Literáridas.
ER – O sexismo e o machismo têm, ao longo dos tempos, desenhado os papéis sociais de homens e mulheres, inclusive na Literatura e nas Ciências. Você já teve sua existência e/ou escrita impactada por ser mulher? De que modo?
Nessa sociedade generificada, percebamos ou não, todos temos a nossa existência impactada por essa questão. Estar do lado oprimido das relações de gênero é uma questão que causa impacto não apenas nas nossas ações mas sobretudo em nossa subjetividade. Somos seres formados e perpassados pela linguagem e não temos como nos blindar das construções sociais. A minha existência, bem como a minha escrita, são indissociáveis da minha corporeidade e performatividade feminina, nada que eu possa pensar, fazer, vivenciar estará imune à construção da minha subjetividade enquanto mulher.
ER – Como mulher que faz e vive arte, quais seus desejos e planos para os dias vindouros?
Desejo um mundo mais inclusivo, no qual a arte possa tocar cada vez mais pessoas pois entendo que os caminhos que mais promovem o pensar, o sentir e, consequentemente a possibilidade de desconstrução e reconstrução do mundo e das relações são a arte e a educação. Desta forma, para um mundo melhor a arte é imprescindível. Desejo também que possamos viver com dignidade do nosso fazer artístico.
As palavras de Bárbara Pontes conectam-se à nossa ânsia pulsante de resistência coletiva, de comunhão de vozes e enfrentamentos e partilha de questionamentos sobre os lugares e papéis a nós delegados. Ao demonstrar seu incômodo e nos provocar sobre a adjetivação de “local” sobre nossas produções, Bárbara nos instiga a refletir sobre como somos tapeadas (burladas? envolvidas? afetadas?) pelo sistema dominante e acabamos por reproduzir suas táticas de opressão e invisibilização que colocam nossas existências e produções artísticas fora do círculo dos aceites. Nós, nossa voz, nossa escrita, nosso lugar também não estão no mundo? Com Bárbara e suas pontes reflexivas confirmamos que sim!
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Bárbara Pontes é autora do livro Foto Grafias: Retratos de mim, publicado em 2021 pela Editora CLAE. Alguns dos poemas do livro foram musicados em parceria com Renato Augusto, com quem divide a produção do álbum Instante do Encontro, disponível no spotify ². A atriz, poetisa e compositora foi uma das vencedoras do Festival Edésio Santos da Canção de 2022 com a música “Águas Doce de Ilusão”, também em parceria com Renato Augusto.
1 https://www.amazon.com.br/Foto-grafias-Retratos-Barbara-Pontes-ebook/dp/B08YFKH79X
2 https://open.spotify.com/album/3VkXlctvCeM6tjSsU6mLaa
3 Disponível no livro Foto grafias: Retratos de mim (2021)