Poemas de Lorenzo Almeida
Lorenzo Almeida. É um poeta, não por vocação, mas por obsessão — por vezes político, por vezes distópico —; porém ainda não se arriscou a publicar um livro e conta com o reconhecimento de leitores avulsos. Além de Drummond, Eliot e Maiakovski, suas maiores influências são Rio Preto e São Paulo. Rio Preto, além de rota de cocaína e de ouro, é uma cidade esquecida pela memória, ao passo que muito agradável ao olhar, por conta dos belos ipês que florescem durante meses de seca. São Paulo serve de relato da sua infância (marcada pelo daltonismo e pelo medo cotidiano) e de crítica ao fracasso do pretenso progresso.
***
Caminhar entre os mortos
Em Pérgamo não fui feliz.
As frotas colecionando aventuras,
tendo à vista um ideal, o porvir,
por isso a jornada às penhas de Cumas.
Logo após o oráculo de Sibila,
a quilha, não mais troiana que latina,
rasga e forma um antro para os infernos.
Um ramo de ouro, caminhar entre mortos.
Eis que desço nas entranhas de Averno,
na esperança do presságio de Anquises.
À mão o ramo, a entrada limiar adentro,
tateando as pedras e estalactites.
Quando correu um tremor pelos ossos.
Vi os condenados por pestes e por dardos
e estas sombras leves, de poucas penas
— tristes figuras ainda pequenas.
Um vulto. Te penetras a Tróia antiga,
ruínas, passos, vencidos em preces.
Um baque. Os heróis que aqui reconheces
celebram as chamas e as setas,
cercados pelos louros dos bosques.
Houvesse alguma expiação dos inocentes
de uma terra arrasada de lendas.
Um baque é um corpo nas águas do Lete.
Toma o ramo, Virgilio latino, meu pai,
deixa-me e larga o vinho e a nau no mar.
Ante mim a revelação, sombra que cai,
de que o limiar é o meu lugar.
Vou exaltar o esquecido nos versos.
Vou buscar um lar no país dos cegos.
Além de caminhar pelo viveiro de corpos,
Giraste a roda da vida
Não como homem, como pedra,
se contentando com a espera do cume,
depois descer rolando, respirando em silêncio.
Prático, político e polido,
de dar pena, na maior parte, sem jeito.
Um seixo estático em seu próprio eixo,
à falésia do esquecimento.
Sigamos então, tu e eu, caminhando pelas tardes,
que escorrem diante da tarde de um vau.
Diante do raso, o fundo rente à praia,
a ver o poente em vão tocando o chão do mar.
Pois virá a noite,
onde, na absoluta transparência da beira,
barcos vazios flutuam feito fantasmas.
*
Entrevista para o jornal
socorro
isso na linha nove
na marginal
isso na final da libertadores
nós dois Juliana e eu
perfeito todos estavam uniformizados de verde
dois subiram e só reparei quando desceram encosta encosta
desceram no silêncio da multidão click clack
sim levaram tudo de mim celular mochila relógio
sim inclusive ela rápido
polícia só depois de uma hora mochila mochila
uma pena disseram cê arranja outra tá apontada pra minha barriga
mochila
mo chi la
grito
quem se importa terça-feira cinco horas encosta
atento pelo socorro e sem muito alarde? mochila
quem se importa se depois de coberto com lençóis click clack
o trânsito e os curiosos prosseguem? carteira relógio
estendam lençóis emprestados por tudo filhos da puta pra minha barriga
sobre o facho que se lamenta pela calçada rápido
vocês que fazem render a venalidade da vida rápido
são cegos à procura do sol nascente grito
porque um dia vão encontrar à face não o luzente socorro
mas o desordenado socorro
porque por quê?
porque
não não linha esmeralda por quê?
isso estação do socorro encosta
verde porque
tudo encosta encosta
é uma pena socorro
sim socorro
outra por quê?
*
Canícula
Cidade esquecida pela memória
Irreal
Onde repisamos as mesmas pegadas
Em terras craqueladas de utopias
Apaga, apaga, vela fugaz!
Apaga com silêncio
o fascínio dos homens
pelas cores, pela chama
de vida ou conhecimento.
Apaga os astros e as luzes,
erguendo ao céu as nuvens
na noite de estrelas.
Apaga!
Leva aos rastros folhas secas.
E encha os pulmões de tempo
para cuspir todos os desejos.
Apaga! apaga!
dizia da janela, o vento.
*
Ossos do ofício
A utopia deixou de dar luz,
senão de um farol-alto,
pretensa lucidez extrema,
excessivamente espiritual,
inclinada às paixões do divino.
Terra de homens que dão fim à memória
para viver num mundo de sonhos,
Sob as sombras de árvores artificiais,
veem a seus serviços os frutos, porém
morrem de sede postos num rio.
O poder da ilusão e seu suplício.
Não obstante, não é sobre edificar ruínas.
Não é sobre arrancar da luz o degredo.
Não é sobre insistir na carne dos mortos.
É apresentar os cadáveres futuros,
sabendo que só podemos avançar depois de
compreendermos os fantasmas.
Não é sobre
tatear os destroços depois do acidente.
É tatear o acidente depois dos destroços.