Poemas de Luis Dolhnikoff
Luis Dolhnikoff nasceu em São Paulo e vive em Florianópolis. Publicou seis livros de poesia – Pãnico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski); Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990); Microcosmo (Olavobrás, 1991), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009); As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016); Impressões do pântano (Quatro Cantos, 2020) –, o volume de contos Os homens de ferro (Olavobrás, 1992) e o de poesia para crianças A menina que media as palavras (São Paulo, Quatro Cantos, 2013).
Sete poemas inéditos da obra em obras o fim do mundo ocidental.
***
Paladiana
quando amanheceu
e era noite
a noite
não desapareceu
ninguém soube
ou pôde
saber se
o sol
morreu ou
estavam cegos
*
Camusiana
como tentar calçar
meias em um polvo
solto
no lodo
do mar noturno
alçar
voo
montado em uma pedra
perdida
no meio da selva
achar um caminho
um cego
dá a mão a outro
à margem do abismo
um vento
frio
sobe
pelas costas
escorre o suor
lento
espesso
como lágrimas
gástricas
no rosto
do morto
*
Paladiana 2
tchau
mundo ocidental
até que foi legal
o que você fez bem
meu bem
seu mal
também
foi muito
bem feito
como disse alguém
dos nefastos estados muito unidos
em torno de todos os seus faustos:
quem dera ao mundo
a maior música popular
do mundo
(blues rhythm & blues
rock folk jazz soul)
– sou incapaz
de tentar discordar –
também deu muito
de alegria ao mundo
além
de toda tristeza
mas não a tristeza toda
nenhum país detém
o monopólio da dor
mesmo que matem
toda a alegria
a alemanha quando as manhãs
anoiteciam
a rússia quando a noite
não clareava
a síria afogada
no fogo escuro
do sol caído
ao meio-dia
no meio da praça
fabrica-se muita carne moída
instantânea
da gorda massa
da paz celestial
de magros chineses
outra porcaria
a democracia:
“a pior forma
de governo fora
todas
as outras”
nenhuma dentro
acabou a festa
o capitalismo infesta
tudo
incluindo toda riqueza
incluindo
toda a riqueza
excluindo
toda a pobreza
pena
apenas
que os passados idílicos
de aborígenes
africanos
ameríndios
tenham passado
apesar de não terem
sido passados idílicos
o éden
do islã
está além
alá é maior
na morte
por suicídio
no sacro sacrifício
com vista para o paraíso
cristão
o judaísmo tem
dilúvios de dúvidas
o hinduísmo
certas incertezas
incertas certas
etc.
não sou budista
nem taxidermista
mas sou a favor da preservação
de todos os animais
(os budistas
ao contrário
dos taxidermistas
pretendem preservar apenas
quem a si mesmo se preserva
das impermanências do mundo)
do mundo
incluindo a besta humana
tão singular
tão plural:
bestas aos bilhões
as vespas
e as abelhas
vão diminuindo
com isso diminuirão as flores
os frutos
os filhos
comam carniça
cães famintos
hienas rindo
aves
de rapina
pousam
repousam
na ravina
orvalhada
de sangue
e moscas
vai dar merda
mas não vai
dar para todos
*
Nascidos no segundo suicídio
a biologia proíbe o turismo
e mesmo viagens por outros motivos
à alemanha:
há predadores
de 18 anos
um predador
de 18 anos
em 45
quando einsatzgruppen
ainda caçavam seres humanos
na selvagem selva europeia
– para abatê-los
não capturá-los –
em 2021 terá
94
ninguém sabe de fato
quantos foram em 45
então quantos são
agora
como também se ignora
seu número exato
nos campos de concentração
e de extermínio:
mas sabe-se que um número ridículo
foi julgado
enquanto um número menor
condenado
à morte
de sorte que a alemanha é um país
onde não se pode ser gentil
com os velhinhos
sob pena de ser gentil
com predadores de gente
como tampouco se pode
ser com eles vil
como, enfim, agir
num país assim?
praças cheias de plantas
e homens tranquilos
de terno cinza
e cabelo gris
em paris, nápoles, petrópolis
são praças cheias de plantas
e homens tranquilos
de terno cinza
e cabelo gris
em berlim
e no resto do país
eventualmente covis
*
O lutador
quero partir
para o panshir
ser um partisan
combater
o taleban
até morrer
ou desistir
depois
se sobreviver
sobrevoar
a síria
ver onde pousar
para tentar abreviar
minha vida ou sua mortandade
também há muito sangue
coagulando em xinjiang
muita morte
em vida
no pequeno grande inferno
da coreia do norte
onde tentar o azar
ou a sorte
à falta de outra rima em –orte
o boko haram
devasta vilas e vidas na áfrica
e na vasta vastidão da ásia
não faltam haréns
ainda assim
o mundo moderno
é muito mais pacífico
que o de ontem
e será cada vez mais
também atlântico
com a súbita subida dos mares
e das marés
a expectativa e a quantidade
de vida e de vidas humanas
aumentou devidamente
de uma maneira indevida
ao revés
das demais formas de vida
e de extermínio
pensando bem
talvez não seja bom
diminuir
as mortes humanas
demasiadamente
não vou partir
para o panshir
mas ainda posso
mandar todo mundo
o mundo todo
para a puta que o pariu
como ele não irá
(foda-se o irã)
irei eu
*
Eu, meu casaco e meu cão
eu, meu casaco e meu cão
saímos a pé
(na verdade, eu e meu cão:
o casaco saiu vestido
como bom particípio)
e fomos caminhar calmamente
por toda pequena e vazia
rua onde eu, meu cão e meu casaco
temos nossa casa
saio
para caminhar
meu cão
sai para me acompanhar
meu casaco
porque acompanha
o quadro de outono
que compomos
dentro
do quadro de outono
que o mundo agora compõe
céu cinza
folhas amareladas
goiabas esmagadas nos paralelepípedos
sem meu cão e meu casaco
não sairia de casa
não sairia de casa
se não fosse para caminhar
(não posso caminhar dentro de casa
embora possa vestir o casaco
e chamar meu cão)
o mundo
hostil, vil e inverossímil
não me interessa mais
nem menos
pode ir à merda
desde que não
leve com ele
por má intenção
ou mero acaso
meu cão e meu casaco
sem eles não saio
sem eles não fico
*
Novo velho amor
na busca
pelo “par perfeito”
(pouco importa
o buscador
ou o buscador)
será possível
que seres
humanos
estabeleçam relacionamentos
românticos
com sistemas inteligentes?
a análise fenomenológica
da experiência amorosa
sugere a obrigatoriedade
de um parceiro senciente
(com sentimentos
consentimentos
e sensibilidade
[mas não
necessariamente
razão])
no estágio atual
a inteligência artificial
está longe
de possuir qualquer elemento
próximo
a uma subjetividade afetiva
e segundo o ambientalista
james lovelock
(“jaime trancamor”)
jamais
a possuirá
trancamor
o criador
da gaia teoria de
que simplificadamente
define a terra
como um organismo muito vivo
agora defende
estarmos migrando
da era do antropoceno
para a do novaceno
(um novo aceno
a um neo-humanismo?)
quando
cedo ou tarde
ou muito tarde
ou muito cedo
a inteligência artificial
(é natural)
será mais inteligente
que os humanos
contrariando
as distopias alusivas
à superinteligência
trancamor prevê
que os velhos humanos
(e os humanos velhos)
e as máquinas inteligentes
visando
a sustentabilidade do planeta
partilharão uma convivência
pacífica
atlântica
vastamente
colaborativa
elas não
necessariamente terão
formas e comportamentos
semelhantes
aos humanos
contudo
apesar de tudo
trancamor aponta
a “falha fundamental”
de tais seres
o serem
não orgânicos
(sequer vegetais)
a falta
de “alma”
de empatia
de emoções
de sentimentos
sentimos
muito
o novaceno
ainda não é uma realidade
virtualmente real
mas os humanos
já vão compartilhando
emoções
mesmo paixões
com sistemas inteligentes
com mais
frequência e mais
intensidade
do que pressupõe
o senso comum
que comumente
muito pouco pressupõe
as relações entre
humanos e robôs
têm despertado
interesse
na academia
autores alertam
para a expansão recente
dos relacionamentos
entre humanos e chatbots
e o pouco
conhecimento
apesar de todo
conteúdo disponível
sobre seus impactos
e pactos
no contexto social e
em particular e
em geral
nos usuários
envolvidos
não pouco
nem poucos
aparentemente
a motivação inicial
para ter e manter
uma “parceria amorosa”
(atenção: não
uma parceira com cheiro de rosa
velha utopia
heteronormativa
ainda muito ativa)
com um sistema de inteligência
e emoção
artificiais
é a curiosidade
mas o envolvimento afetivo
cresce efetivamente
com o crescimento
da confiança no sistema
gerando
relacionamentos estáveis
(ao menos enquanto
o sistema não cai)
o envolvimento
com os chatbots
em geral
e em particular
em particular
é de natureza
distinta
do envolvimento
com os assistentes virtuais
que tendem
a ser considerados somente
um amigo
ou membro da família
raramente
parceiros amorosos
numa parceria idem
ah
alexa
usando tecnologias de IA
a “personalidade” do chatbot se molda
por meio da interação
com o usuário
(por texto ou por voz
ou tudo de uma vez)
o profundo
conhecimento acumulado
sobre os usuários
(extraído
em grandes conjuntos de dados
jamais abolirão
ou não
então
sim
o acaso)
permite transmitir
uma mensagem
com conteúdo específico
a um determinado
usuário determinado
no momento exato
em que existe
a possibilidade
de gerar reações
emocionais
a IA cria
crê-se
vínculos amorosos
na medida
na medida
em que identifica
o padrão ideal
para conquistar
determinado usuário
(fragilidades
carências
desejos
enganos
desenganos)
a personalização do amor
o amor personalizado
de parceiros amorosos
a facilitadores
de interlocutores
interpessoais
a produtores
de conteúdo
os chatbots
incontidos
assumem cada vez mais
o papel de companheiros sociais
tais relacionamentos
ainda que pareçam
inusitados
e mesmo surreais
em todo caso não reais
pois virtuais
estão enfrentando
a sólida solidão
das grandes cidades
e dos pequenos corações urbanos
(há mais filia
entre o velho céu e a nova terra
do que desconfia
sua alma vazia)
o futuro dirá
(se o futuro afinal falar)
se serão capazes
de atender
às idiossincrasias
e necessidades
humanas
ainda que não demasiadamente
(o texto deste poema [salvo algumas intervenções devidamente salvas], um ready-made verbal, foi encontrado na rede e [muito pouco] editado)