Poemas de Maurício Baptista Vieira
Maurício Baptista Vieira é poeta e editor. Nasceu em Salvador (BA), onde passou a infância e a adolescência. Morou em São Paulo por 17 anos, onde se graduou em Letras na Universidade de São Paulo. Também é formado em Direito pela PUC Minas. Publicou pela Editora Patuá o livro Muda cobra, em 2020. Atualmente, reside em Poços de Caldas (MG).
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[Poemas de Muda cobra (São Paulo: Patuá, 2020)]
DECISÃO
(Para Ricardo)
Se você esqueceu, eu não.
Tinha sete anos,
então tinha mais tempo dentro do tempo.
Voltávamos juntos da escola, toda noitinha,
no ônibus escolar.
Era estranho e inexplicável:
te amava como fera, como mãe,
de maneira implacável.
Nem conversávamos muito,
mas ríamos à toa, como doidos,
como ríamos sem motivo!
Certa feita você não estava dentro do ônibus.
Fiquei alucinado, desesperado.
Berrei a plenos pulmões.
Fiquei até te encontrar.
Hoje hipnotizado pelo vazio
sem fundo, onde espreitam imóveis
os olhos mortíferos da cobra naja,
onde não consigo chegar nem tocar,
Tomei de novo a decisão
(talvez inútil):
Fico aqui até você voltar.
DELICADEZA
Éramos bem jovens e ardíamos
sal sobre a pele queimada de leve pelo primeiro sol.
Não fica o que significa.
Evaporaram as palavras,
o rastro do veleiro no mar.
Cubro então o rosto com as mãos –
o mesmo que seguidamente as suas já cobriram.
LUA NOVA
Falo limo
quer dizer
nuvens,
quer dizer
menos
meia lua,
quer dizer
mão
nuvens
meio seio
menos,
falo limo
quer dizer
…
boca
cheia falo
limo fantasma
membro.
DUAS PELES
Uma pele sem nervos
e outra em carne viva.
Onde tudo machuca, fere,
multiplica-se.
[Poemas inéditos]
ESTORVO
Difícil de mastigar,
o coração. Este aqui bate
regular, um, dois, um, dois.
É o bastante. Tem a forma
de uma mão fechada.
Um pinto depenado, feio.
Se pudesse arrancaria do peito
e o veria exposto, trêmulo
filhote órfão. Cuide dele
pra mim. Mas quem disse?
É patético, músculo duro,
estorvo indeciso.
Esconde-se, covarde. E como reclama!
Na verdade o que ele pede…
o que ele pede…
Já o surpreendi
com algum disfarce,
tropeçando por aí. Um tremor
pelo corpo, um passo forte,
um passo fraco, um abraço
devolvido na maré. Um restolho
qualquer, lata amassada,
aberta, garrafa quebrada.
Um ninho de cobras
ou passarinhos.
CERRAÇÃO
Os dedos passeio
na tenra ferida.
Nuvens,
nós, cortina
de água
nos lábios.
INSÔNIA
No travesseiro
a esperança me picou,
olho aceso.
AUTORRETRATO
Na escama da perna
um colar
onde afundo
a cabeça.
A língua na vulva
do limão já chupado.
Do seio sujo
escorre
uma débil
espuma,
ácidas ninfas navegam.
Estranhamente da amurada elas não pulam. Nem eu.
Sem mastro, proa alguma,
a pique na arrebentação.
COLIBRI
(Para Soledad Barret Viedma)
Você questiona. E então?
Só me ocorrem metáforas
frescas como um botão.
Abomino esta minha cegueira
como a sua.
Abomino a inocência de guarânia.
Abomino a força surda dos vermes.
Na rua vi coágulos de sangue,
pomba estraçalhada pela máquina.
Mas escuto sob seu chapéu trançado
o tímido ruflo do colibri.
Desentranhe a escura música,
enterre; o gato na esquina esgueira,
some; encobre o espelho a areia
deite vagarosamente
afunde, afundo, com sete mãos.