Poemas de Rafael de Souza
Rafael de Souza é natural de Pedra, Agreste de Pernambuco. Passou a infância e a adolescência no sítio Jucá, região rural do município, e sempre frequentou escola pública. Atualmente cursa o último ano de doutorado em Literatura na UnB, onde estuda as relações entre romances históricos do Brasil e do México. Publicou Reinvenção dos pássaros (Penalux, 2022) e O âmago das coisas (Penalux, 2021), entre outros.
***
Sobreplanos
Estirados na grama,
as mãos atrás da nuca,
tentávamos adivinhar formas de memória
nos cumulus mais dispersos
(quase os conseguíamos tocar,
tamanha era a nossa distração).
Testemunhávamos o tempo se despir
diante de nós, entre moinhos.
Despido ele, se insinuava a réstia dos corpos,
numa leveza de pétala
cujo sentido jazia ali, na grama e nas nuvens,
além do trânsito delas a um lugar qualquer.
E uma vez aguçada a sensibilidade,
nossos corpos como que transbordavam,
congregados num só plano,
no eixo do qual éramos guiados
ao interior das sensações,
onde o gozo, as nuvens
e os arbustos também se fundiam a nós,
numa vazante noturna,
rodeada de pirilampos.
*
A voz das plantas
Aguça teus ouvidos e ouve
— escuta o que te dizem elas.
Não são as folhas, ou o caule,
nem os galhos. É o vibrato
de certa voz alegre, quase
um murmúrio, que penetra
a firme redoma do tempo.
É uma vozinha a princípio
solitária, e vai-se espraiando,
alabastrina, até que não
lhe sobram espaços a serem
vistos. Aguça de uma vez
por todas teus ouvidos e ouve
— escuta sem impedimentos
a tênue e doce voz das plantas.
*
Percurso infinito
Pedalo
pedalo
junto de ti
(tu estás segura
no quadro da bicicleta
sentada de lado
teu riso
à altura do meu queixo).
Em vez da brisa
invade-me as narinas
o perfume
dos teus cabelos.
E por dentro
desejo
que nosso ponto de chegada
demore
no mínimo
a rua
a cidade
o mundo
— a vida inteira
em todas as suas
subidas
e
decidas.
*
Temperança
Eis, aqui, a flor do maracujá,
tão sibilina… Ela é neve nas bordas,
um nuance entre violeta e roxo
na corola, como que à espera de ser
fertilizada. Só nos falta a abelha.
Chamam-na mamangava; seu papel
é fecundar os frutos por nascer,
um por um. Se ela não vier, porém,
é necessário que se faça tudo
manual e detidamente, até
que não reste nenhuma a ser passada
a infusão que visa substituir
o pólen. É final de primavera,
pronto começará o verão; é
chegado o tempo, chegado o meio
do dia… Até o começo da noite
precisa-se agir, para que a colheita
não corra o risco de se perder, ou
que a qualidade dos frutos não seja
abaixo da esperada… Mas já se ouve
o zunido! Sim, meus senhores, ela
veio em busca das flores por cair,
veio polinizá-las, numa tal
gentileza que tão bem as abelhas
sabem praticar, sem nada exigir.
Muito em breve poderemos provar
o néctar dos frutos que brotarão,
gordos, de toda a nossa plantação.
*
Ditos e risos
Nossos ditos nunca ficam em branco,
passe o tempo que passar. São que nem
o beijo dos dois pombinhos no banco
da praça, ou a luz de um farol além,
que na espuma das marés se detém…
Ditos como os da noite maldormida
dos nossos avós, do frágil neném
desperto, cuja fome aborrecida
só cessa com o leite materno. E a lida
silenciada — feito o dito dos velhos
que se foram — é mesmo padecida,
tão cristalina após um riso franco,
ao darmos com a velhice nos espelhos…
E rio de mim: pobre e velho e manco!
*
Sobrevida
Os melhores versos nunca
são terminados. Continuam
sendo reescritos século
após século, ano após
ano, minuto a minuto,
a momento, ad infinitum.
Cada leitor reescreve-o
com lápis imaginário
e letras imaginárias,
em papel imaginário.
Cada um o concebe em seu
plano, segundo vivências
e revivências, além
do andar das eras. E mesmo
o mais despretensioso
dos poemas pode ser
eternizado, seguindo
o coração do leitor.
Quem o concebe, talvez
não se dê conta de tal
poder, e talvez não viva
o suficiente para
sabê-lo. É uma ironia
própria do existir. Mas ela
não consegue fazer frente
a tudo que surge e esteja
fadado à eternidade, ao
reflexo da vida nas
palavras. Assim, poema,
reescreve-te a ti próprio
e resiste, firmemente,
até o sol se esconder
(pela derradeira vez)
nas campinas, ao poente.
*
A lei do retorno
As galinhas cantavam, sim: todos ouviam;
e dias após vibrava, de chofre, um pio assustado, seguido de outros,
os quais, quando não indicavam a aparição de alguma raposa ou serpente, eram denúncia de um ninho próximo.
E lá ia a senhora, já bem idosa, a embrenhar-se nos arbustos,
pois, apesar da idade, tinha pernas firmes como as do povo de sua geração.
Passavam-se uns minutos e lá vinha ela,
trazendo um punhado de ovos no regaço da saia,
e agachava-se com cuidado para não quebrá-los ao passar por entre os fios de arame da cerca.
Desses ovos derivavam os bolos de tacho, chamados também pés-de-moleque,
além dos bolos de trigo e mandioca,
das batidas e mingaus
e dos ovos mexidos, que serviam de mistura tanto no café como nas demais refeições.
E quando a idosa surgia dentre os arbustos,
com os olhos fixos nos ovos e os lábios traçando um riso pensativo no rosto, dizia
se Deus tivesse permitido ao feijão nascer naturalmente, como nasce o mato,
não precisaríamos plantar; apenas colhê-lo à porta. Bem assim são os ovos,
que a terra não nos dá de graça, mas precisamos tomá-los das galinhas, as quais só nos ofertam eles se as dermos o milho colhido de nosso próprio suor…
*
É pena
É pena que nossas vidas
sejam tão breves, tão cheias
de problemas, que corramos
contra o tempo, contra os grãos
da ampulheta, contra táxis,
ônibus, motos… É pena.
É pena que em muitos sítios
a que vamos não possamos
mais sentir a solidão
que tantas vezes faz bem,
que não possamos trilhar
o nosso próprio caminho
de regresso, bater nossos
pastos, abrir novas sendas
ao fim das quais consigamos
chegar ao cimo da mais
alta cordilheira… É pena.
É pena haver tantos sonos
interrompidos, martírios
abafados nas cobertas
e fronhas de travesseiros,
tantas mães compungidas
pela ausência de seus filhos,
que talvez nunca regressem,
tantos livros nunca lidos
mais, entregues à poeira
e às traças da estante… É pena.
É pena que autores tão
jovens tenham falecido
antes do tempo, porque
muito mais podiam ter
escrito, e muito mais nossas
existências haveriam
de ganhar em profundez.
É pena que não se entenda
a causa de muitos males,
não se conheça o remédio
que cura as dores do espírito
em definitivo, não
se superem os limites
da gravidade sem serem
necessários alguns métodos
além das asas mecânicas.
É pena… No entanto, mais
vale uma vida com poucos
anos, mas muito bem vivida,
que uma longa a qual (é pena!),
por um motivo qualquer,
irremediavelmente
haverá de ser pequena.