Poemas e uma obra visual de Eunice Terres
Eunice Terres é artista multimídia, poeta, estudiosa de Filosofia e pesquisadora das questões sensíveis à essência humana. Sua escrita poética nasce onde pensamento, imagem e palavra confluem à culminação do inapreensível no caos das significações. Colhendo o que cintila da memória os seus vestígios, tece nos interstícios, voz e silêncio, gesto-não-gesto, um eco do improvável.
Paranaense radicada em Curitiba, já participou em diversos eventos, mostras e exposições coletivas e individuais, com obras em acervos no Brasil e exterior.
O poema “Herança” foi poema publicado na antologia poética Escrituras da Menarca (Editora Essencial, 2022).
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Fenestra Temporal (2020 – renda de crochê, acrílica, chave e fio de cabelo bordado sobre tela, 50x50cm)
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Herança
Vim ao mundo como equívoco do avesso, um incômodo que não se expele, não se resguarda, nem se expõe. O silêncio no último cômodo da casa, lá onde o fim encontra o começo.
As faces descobertas sob o véu translúcido de uma vergonha intransponível, a chegada se fez demarcada no grito e no sangue consagrado. Amém.
Na passagem, do solo semente eterna, trouxe mais buracos como oferta.
O cinza da fumaça subia do telhado, o céu aberto se fechava, o infalível fogo fracassava, o frio penetrava ossos e coração, dos que sentiam a corrente de ar. Desde lá, o caminho em desterro, amputação de átomos primevos, sob o manto, ungida e abençoada, da terra das almas aos pedaços, arrasto meu corpo e seus buracos.
Carrego bagagem de dejetos de ouro e barro, trecos sem desvelamento, restos que não descolam da memória, sem braços, sem nome e sem agora. Flores no cabelo, remendos mal feitos em torno de um centro sem borda, morte-vida sob medida e perfeição.
Entre o trapo e a estranheza dos tecidos, entre a cegueira e a noite branca, na presença da lua e seus fantasmas, fundei em desalinho aquilo que comigo deveria ter nascido. Patas para partida sem chegada, garras cravadas no medo, palavras lavradas no desejo, voz sem nascimento.
Tudo aqui é prótese, mecanismo incerto, improviso insuportável, parafernália deplorável, anomalia triste, o dorso da palavra, segredo e prego, na fronte a mão cravada.
Vim ao mundo como falha, como falta, como nada, mas, para incômodo dos néscios, falta pode ser excesso.
Antes, e adiante, atravesso meus desertos, sigo no fio gélido dessa estrada.
O vento fortalece o movimento e respinga ao longe o que é água, assim me levo, corpo buraco aberto, corpo jorrando excessos.
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Aliança
Quando a árvore se erguer frondosa
Rompendo o pó da Terra sólida
Ao nível da montanha se ouvirá
Rumor inquietante do bando sem destino
O coração puro carrega a aliança na asa
Ainda que se creia em desequilíbrio
No topo do último galho repousará o grande ninho
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Subterrânea –
A porta há de estar com as chaves no trinco
Lenta, quase estática
Ousarás a abertura com a ponta dos dedos
É dentro que se guarda o grande segredo
No que se funde na plenitude do silêncio
Mas é no fogo do fora que se queimará a retina
Olhos vítreos que desliza à pele da flor
Perde da terra o lamento que nutriu sua glória
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Sino
sua face movediça
interior de gota d’água
moveu-se abismada de lá
seu corpo agora testemunha
a longitude da chuva
e não mais negocia esquecimento
e outro silêncio se instala
sua pele outra temperatura
declina da palma da mão a ruga
pisa noutra terra que flutua
e não mais a dança da cegueira
de mãos juntas entre as nuvens reza
anuncia amuletos milenares
rompe o silêncio das armas
e não mais voltará a desviar
e outro silêncio se instala
moveu-se inteira de lá
sua boca agora ousa
da completude a falta
sua língua de prata espessura
e não mais porta voz da ruína
passa da roda à ventania
para a igreja da grande ilha
soluços das águas partidas
eiva o sussurro da palavra
e não mais a conjuração da dobra
e outro silêncio se instala
*
Sopro
Por onde a singeleza suprime sereníssima
Pisar de leve a fina camada cinza da terra
Desdizer o mal vestido de corte
Antes de amolar a lâmina de prata
Superar a representação catastrófica
Que corre a ânsia da suturação das bordas
Limpar delicadamente a casa secreta da alma
Deitar calma a face sobre o agora
Fazer do amor a nobre arma
Se equilibrar na tênue linha silábica
Separar o sobejo da falta, o rubro doente da água
Na sobra de um vazio inconfessável do Nada
O sopro inoperante e às mãos
A única reza na caixinha ornamentada de outrora
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Ramagem
O nada sondado na fresta do tempo
É fissura no espaço o meu céu aberto
Me apeguei ao risco a me perder do caminho
O cultivo do nada é a penhora da alma
Um pouco de sombra é a moeda de troca
Não possuo nada, sou esboço como obra inacabada
Nem cartas, poemas ou palavras
Que brotam involuntárias do vazio por vida própria
Vetusta terra preta e molhada
Escalam no silêncio sorrateiras como a vinha-falsa
Que no Oriente avança por fora das casas
Quando se vê, não se vê mais nada
Raminhas se avizinham do centro alçando o eterno
Belíssima videira de fachada
Tudo encoberto e mesmo o mistério
O tempo mata e regenera o que vela o coração
A dor é a alegria da poda
Pequenas uvas azuis para a próxima estação
*
Pólen
Prefiro o poeta menor
O que se fecha e mal solta um sussurro
Sigo atenta às sombras de seus sinais
Antes do mínimo estalido de suas articulações cartilaginosas
Assim como pressinto a morte sopesando o mundo
O poeta escondido, sem lente de aumento, sem outdoor, sem triunfo
De soslaio, num ínfimo humilde lamento
Me deleita em seu armagedom profundo
*
Noite Calada
Estou a mastigar fantasmas
Sob os olhos de Deus
Mesa posta e vela acesa
Aguardo seus desígnios, e a sobremesa
Ouço o som de um piano inaudito
Dos dedos de um passado enrijecido
Se espalha nas paredes feito limo
Estou a mastigar fantasmas
Danço vagarosa a melodia triste
Minha fome insaciável
Partitura desbotada como o rosto do retrato
Um vulto me convida a bailar na madrugada
Declino e o chamo à mesa, ele senta
A música para
Minha fome insaciável
Estou a mastigar fantasmas
*
Quetzalcoátl
Meu Quetzal luminoso pousado em pedras macias
Plumas a perdoar a intenção do que não foi dito
O ninho sempre se vê palavra feita
Não se pode dar glória de chegada,
Quando ainda a linha em curso no vento
Espontâneo mesmo é o acidente do teu voo
Quando o limite não é o que lima o farfalhar de tuas asas
Mas o passo indefinível deste corpo
Desarticular o adiamento oracular deste sopro
Ancoragem no rigor da gota d’água conta-gotas do teu mel melancolia
Híbrido pastoso de mim é o sono-poema, nascendo à beira da morte, fruto irrepetível das mãos da noite
Onde desacordados os olhos opacos não encontram conciliação neste vórtice
Partícula sagrada que ressoa até o fim da incompletude de um sonho
Quase alguma coisa antes de acordar, quase nada, dissipação ambiciosa
Quando o sol se espera na pálpebra que encerra.
Tua plumagem resplandecente
*
Enxovia
Deslizei fácil no côncavo de minha arrogância
Saltei às extremidades direto para o fosso da vaidade
Diluí junto à poeira movediça, num ímpeto entorpecida,
Sugada pelo duto da soberba
Escorreguei ligeira para a oquidão mais profunda em presunção
Esgueirei-me em elogios e já na planície dos afetos confortáveis, exultei passos largos, insipiência plena
Logo ali, tropecei com tudo na rocha de um grande orgulho, caí de cara no egoísmo, me ralei inteira e segui caminho
Insisto, logo escalei com força a montanha do otimismo, alçando voo à ambição
Lá no alto da prepotência, no cume perigoso da elevação
Eis que em desequilíbrio, tombei direto para dentro do buraco espelhado de meu Ego
Que se partam todos meus reflexos
Para junto do amor de minha miséria, deitar-me deplorável meus fracassos sobre ela
*
Tratado
Reconheço teu gesto quando se volta para concha
Procura agasalho no escuro da noite fugidia
Virando-se de manso se fecha em dobradura delicada
Marcando a pele na pressão da própria alma
Suspenderei o alarme do dia para velar teu sono
Não temas minha ausência, meu cansaço
Se me afasto, é apenas para te deixar plácido perolado
Imerso no fluxo e refluxo das ondas do teu mar revolto
O vento que te leva é mais frio e voraz que o vento que te traz
São teus os meus suspiros e a água salgada da minha boca
Ou isso ou nada
Ao pé da pedra que brilha plantei meus olhos doces
No teu eterno vai e vem
E antes que as famélicas gaivotas regressem
No instante em que a manhã se revela
Em silêncio
Para ti como o sol estarei