Poesia amorosa e organização do caos em “Aldrava” de Edson Flávio Santos
“Poesia amorosa e organização do caos em Aldrava de Edson Flávio Santos” é uma resenha escrita pela editora Divanize Carbonieri. Para adquirir o livro, clique aqui: (https://loja.tantatinta.com.br/produto/aldrava/).
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Poesia amorosa e organização do caos em Aldrava de Edson Flávio Santos
Aldrava (2020) de Edson Flávio Santos funciona tanto como o desenho da planta de uma casa quanto um inventário de cicatrizes emocionais. A experiência arquitetônica, por assim dizer, já se inicia no título. Da mesma forma que alguém utiliza um batente de ferro para obter a permissão de entrar numa antiga residência, a leitora é convidada a fazer um gesto semelhante, ainda que simbólico, para ingressar na obra.
O clima de descoberta passo a passo, mais ou menos como percorrer os cômodos de uma casa, ainda se descortina a partir da ausência de um sumário. Para sabermos o que o livro contém, temos que adentrar nele aos poucos. A primeira parte, chamada de “Antessala e vestíbulo”, funcionaria, então, como a introdução nesse edifício poético construído por Santos. O que encontramos aí são poemas de tom melancólico, marcados pela sensação de perda e inquietação constantes.
Nesse sentido, “a melancolia do rio/seu silêncio, sua paz/a paz que inquieta” (p. 9), exatamente a primeira estrofe do primeiro poema, estabelece uma espécie de cenário para essa vivência. E, ao contrário do que vínhamos esperando, não se refere a um espaço interno, doméstico, mas externo, a céu aberto: “estrela dalva, único brilho no manto negro da noite/sozinha, absoluta, procurando…/espreitando os seres, interpelando…” (p. 9). A atmosfera de uma voz poética que mira solitária o céu noturno nos fornece a pista de que o tal espaço interno se refere não aos cômodos de uma casa real, mas à interioridade do poeta, entendido aqui como ente ficcional.
Os demais poemas desse segmento corroboram essa ideia, e talvez um deles se imponha como um paradigma para a compreensão da construção geral da obra:
a cicatriz
o tempo passa e descubro minha cicatriz
o filete tênue de carne
a transparência do ferimento
toda exposição da minha fragilidade delicada
ao tocá-la, vejo que foi necessária a machucadura
a marca eterna do corte transversal
como memórias de uma cesariana, fecho os olhos e vejo o
jorro de sangue por entre as
mãos
a debilidade dos movimentos infantis.
dor que me vai por dentro e
toca o coágulo dos sentimentos secretos
o arrepio frio do vento da madrugada gelada
prazer molhado e quente, como
o beijo… a navalha sutil.
adeus. (p. 15)
Assim como as peças residenciais são riscadas na planta, sobre a pele são delineadas as cicatrizes físicas, muitas obtidas na infância, período em que ainda não temos pleno domínio de nossos movimentos. Porém, a cicatriz que serve de mote para esse poema é também emocional (“coágulo dos sentimentos secretos”). É por dentro que se sentem as maiores marcas do tempo que passa e a tudo leva. Subentendida está a perda de um amor, uma vez que o beijo, ao invés de promover um encontro de corpos e almas, na verdade sinaliza um corte, uma separação (“navalha sutil”), culminando na necessidade de se despedir do ente amado.
Prosseguindo com o passeio dentro dessa construção, encontramos a segunda parte, “Alcova e quarto de dormir”. O que estaria guardado aí, naqueles que costumam ser os aposentos mais recônditos de uma moradia? Como não poderia deixar de ser, os sentimentos que se expõem nesse momento continuam na mesma seara do que já vinha sendo anunciado, mas parecem se dar de forma mais íntima ou intimista: “soco no estômago/[…] raiva/ r a i v a, muita/r a i v a./traição./solidão”. Ou ainda:
voo só
corro
vivo,
e me (re)invento.
s
ó.
(p. 23)
No quarto de dormir, a voz poética tenta digerir a condição de estar só. Os versos exíguos, com poucas palavras, às vezes apenas letras, comunicam visualmente essa sensação. Mesmo as palavras aparecem desacompanhadas, contando apenas com o som e o significado que lhes são próprios para existir dentro do poema. Também é preciso ressaltar a polissemia envolvida na escolha da palavra “só”, que pode funcionar tanto como um adjetivo quanto como um advérbio. Nesse último caso, o sentido apontaria, então, para o ato de apenas voar e de apenas se (re)inventar em meio a uma existência solitária. Mas, ironicamente, ambas as coisas não são simples de se realizar, aproximando o advérbio, na verdade, do seu oposto.
Dessa parte também faz parte o poema “será que ele vem?”, que a princípio nos conduz a pensar que o “ele” do título se refere a uma pessoa, ao amado ao qual se espera: “já passam das quatro da manhã/e até agora nada./será que ele vem? será?/eu senti que ele viria” (p. 27). Porém, ao final, somos surpreendidos por estas estrofes: “já sem sono/sem esperança/sem alegria/se não vier o meu verso/viverei eu/sem poesia(?)” (p. 27). Aquele a quem se aguarda é o verso, a poesia, que teima em não chegar para o poeta que está inquieto à sua procura. Essa confusão entre o amor (a pessoa amada) e a poesia parece percorrer o livro como um todo, não apenas porque o primeiro serve de assunto para a última, mas principalmente porque, ao falar de amor, o poeta está de fato explorando as possibilidades da poesia. O amor que surge num poema nunca é o amor real, impossível de ser plasmado em palavras, mas aquele que pode ser tratado de forma poética. Poesia amorosa é, antes de tudo, poesia.
Na terceira e última parte, “Sacadas e parapeitos”, lemos composições cuja construção parece diferente das anteriores. São poemas curtos, espécie de neohaicais, em que a brevidade e a concisão, características da poesia de Santos, são ainda mais ressaltadas. Percebe-se a intenção de explorar mais fundo a materialidade da palavra, seus fonemas e sílabas, como no poema “literatura”: “letra dura/dura a vida/letra viva/avivalma” (p. 54). É a literatura uma “letra dura”? Uma matéria à qual é necessário se desbastar com força, para dar conta inclusive da dureza da vida e, assim, dar vida ao que parecia inicialmente duro e inerte?
Essa ideia continua no haicai escrito em parceria com Eduardo Mahon: “letra é tão dura/dura é a vida/mas literatura”. Não coincidentemente esse é o poema que encerra o livro. O que nos resta diante da dureza da vida é fazer literatura? Para Santos, sim. É por meio da poesia que ele encontra sentido para a sequência de perdas que vivencia, assim como todas nós que estamos vivas. A literatura nos liberta do caos, como diria Antonio Candido (1995). Ela nos organiza e, assim, nos torna mais humanas, mais conscientes do que significa a trajetória humana, da mesma forma que Aldrava, edifício do qual saímos alimentadas pela experiência de estetizar a dor que todas sofremos.
Referências
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. Vários escritos. 3ª ed.. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
SANTOS, Edson Flávio. Aldrava. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2020.
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Alguns poemas do livro
dor da cor
a dor
da cor
dói no cor
po.
o sol
da cor
ascende
a vida
que jaz
na dor.
o sal
da cor
dá gosto
à vida
sem sabor.
a memória
da cor
mantém vivo
o odor
da flor.
o gingado
da cor
faz mover
o cor
po e esquecer
a dor.
*
aldravas
o vento frio do fim da tarde.
no peito arde a aldrava do coração, arde.
por entre as pedras do calçamento,
petrificado, te vejo
persigo seus olhos,
seus passos
escancaro as portas
e tu entras
sem explicações,
sem bater
sem se atrever
nos entretemos da vida,
das duras coisas da vida.
nossa arte é viver.
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Edson Flávio Santos é doutor em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). Mora em Cáceres, colabora com a Revista Literária Pixé e integra o grupo de pesquisa Wladimir Dias-Pino. Aldrava (2020) é seu livro de estreia na poesia.