“Primeiras estórias” de Guimarães Rosa – Por Andri Carvão
“O canal que mantenho no YouTube desde outubro de 2021, Poesia Nunca Mais, onde indico livros e compartilho algumas de minhas leituras, deu margem a que eu escrevesse minhas impressões de leituras como roteiros para a realização dos vídeos. A princípio em forma de tópicos, resolvi organizar os escritos de modo a que pudessem ser lidos em algum meio: blog, rede social, site etc. Com a apreciação sobre Primeiras estórias (1962) de Guimarães Rosa prosseguimos com a coluna “Traça de Livro: …impressões de leitura…”.
Vida longa à Ruído Manifesto e aos seus leitores!”.
Andri Carvão é formado em Letras pela Universidade de São Paulo, autor de Um sol para cada montanha, Poemas do golpe, Dança do fogo dança da chuva e O mundo gira até ficar jiraiya, dentre outros. Apresenta o canal no YouTube Poesia Nunca Mais e publica poemas quinzenalmente no site O Partisano.
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Primeiras estórias | Guimarães Rosa
Primeiras estórias (1962), apesar do título iniciático, é o terceiro livro publicado pelo escritor brasileiro João Guimarães Rosa (1908-1967), após Sagarana (1946) e o clássico Grande sertão: veredas (1956).
Assim como é comum em sua obra, aqui nessas estórias primeiras do nosso Rosa, já nos deliciamos com os achados do autor em neologismos por aglutinação, tais como: “enxadachim” (espadachim de enxada = trabalhador rural); “engenhingonça” (geringonça engenhosa); e “boquinãoabrir” (em oposição a boquiaberto), só para citar alguns exemplos brotados do poliglota Rosa, mestre das palavras.
Como contar um conto sem aumentar um ponto? E sem spoiler! Ou melhor: como contar um conto sem entregar os pontos? Ainda mais em se tratando de contos curtos. Embora não seja a regra nas paragens do mineiro Guima Rosa, talvez o único autor brasileiro a ombrear com Machado de Assis. Contos curtos sim, sintéticos quanto a escolha das palavras, como é tão caro à poesia – prosa lírica de Rosa.
Não cabe aqui resenhar todos os contos, talvez apenas tecer algumas breves sinopses, ou resumi-los ao tema principal de cada narrativa. Primeiras estórias é composto por 21 contos, dos quais apresentarei uma pequena amostra.
A começar pelo título, Primeiras estórias é grafado com ‘e’ pelo autor para diferenciar de história. Embora sinônimos no dicionário, Rosa afirma assim a particularidade da ficção do contador de estórias com ‘e’ em relação ao registro de época da história com ‘h’ feito pelo historiador.
Há a descoberta do mundo pelo menino ao visitar os tios no conto “As margens da alegria”.
Em “A menina de lá”, Nhinhinha de 4 anos diz disparates poéticos muito avançados para a sua idade. E, como se não bastasse, a menina Nhinhinha prevê o futuro e conquista a fama de milagreira.
Há também um interessante ensaio sobre o espelho em “O espelho”.
E os três caboclos mal-encarados montados a cavalo em “Famigerado”! O ofendido avança no arraial de cenho carregado, porém aberto ao diálogo.
“– Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é: fasmisgerado” (p. 16) Palavra usada por “um moço do Governo”. E o cabra sem saber se era elogio ou difamação necessita esclarecimento. Embora seja um matador aposentado, o cabra de muitas mortes nas costas pode voltar à ativa dependendo do significado.
“O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo.” (p. 14)
Já em “Os irmãos Dagobé”, temos o velório de Damastor Dagobé, o mais velho de quatro irmãos facínoras.
Damastor é uma espécie de patriarca ditador do que restou da família: irmãos numa casa sem pais. Mentor dos “meninos”, Damastor Dagobé destrincha seu “inventário de maldades” enquanto a chuva cai lá fora.
“Eis que eis:”
Liojorge é o responsável por enviar Damastor “para o sem-fim dos mortos”. ‘D’ de coisa ruim.
Derval Dagobé – o caçula;
Doricão Dagobé – o do meio; e
Damastor Dagobé – o primogênito finado “mandão e cruel” que deixa dinheiro e nenhuma saudade. Mas, ao fim e ao cabo, depois do chorar/rir do velório ao enterro, vem o acerto de contas – a vingança! –, porque sendo irmãos de quem são, os Dagobé não levam desaforo para casa.
“Se e se?”
E não é que o doido se oferece para carregar o caixão!
Primeiras estórias apresenta pelo menos duas pequenas obras primas do conto brasileiro: “Sorôco, sua mãe, sua filha” e o famigerado “A terceira margem do rio”.
Em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, Sorôco leva ambas de braços dados “uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro.” (p. 21) para entregá-las à viagem final na estação de trem com destino ao sanatório. No caminho, sua mãe e sua filha entoam juntas a canção da desrazão, de modo que ao partirem no trem da estação, Sorôco desnorteado, sem olhar para trás, volta para casa cantando para si a canção familiar, acompanhado por toda a cidade como em romaria que segue seus passos cantarolando a, já agora, sua canção.
Por fim, esse que é um dos meus contos favoritos da vida, o qual retomo a leitura de tempos em tempos: “A terceira margem do rio”, o mais célebre (famigerado) dessa coletânea dos primeiros escritos do autor de Grande sertão: veredas.
O pai decide viver numa canoa amarrada a uma árvore e ancorada (amarrada) no meio do rio. Sendo ela (a canoa) a tal terceira margem, uma terceira via: nem tanto ao chão nem tanto ao mar; nem numa margem nem na outra; nem terra nem céu; nem água ou ar; uma opção o caminho do meio. No meio do caminho o que vale é a jornada.
Nada de pescarias ou caçadas, preocupação da esposa. A canoa seria a sua nova morada. Canoa de pau de vinhático feita por encomenda.
“Cê vai, ocê fique, você nunca volte.” (p. 37)
O pai ao relento, exposto às intempéries do tempo, envelhece na floresta: de cabelos brancos e desgrenhados, barba comprida, todo peludo, com aspecto de bicho, quase nu. A mulher desiste de esperar e se muda com uma das filhas. A outra filha se casa e parte com o marido. Só fica o filho com a missão de levar o de comer e roupas ao pai. Pouco do muito que o pai toca já basta para a sua subsistência. Até o esperado dia em que a canoa, seu berço e sua campa, lhe serve de condução para o outro lado.
Spoiler:
“Pai, o senhor está velho”, grita o filho já grisalho, à margem da vida de seu progenitor. “Já fez o seu tanto… Agora, o senhor vem, não carece mais… O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!…” (p. 42) Arrependimento (ou medo) pela rebeldia de não seguir os passos do pai? O pai nunca mais se viu. Metáfora da hereditariedade da vida quando se deposita o filho na mesma “canoinha de nada” que o conduzirá através desse rio à ilha dos mortos.
“A terceira margem do rio” é peça grandiosa em mera meia dúzia de páginas. “A terceira margem do rio” (repito tal qual um slogan, só para reforçar) virou filme, série, novela, quadrinhos, pintura, música de Caetano e Milton. Quem toma conhecimento não esquece; conto que acompanha a vida do leitor. A terceira margem, esse entrelugar.
“A terceira margem do rio” do Guima Rosa é um CONTO BELÍSSIMO!, para dizer o mínimo. Se não conhece ou não teve a oportunidade de ler – para tudo! –, para de ler esse textículo agora e vai logo ler essa estória, disponível na web caso não tenha o livro. O tempo urge, o tempo ruge! “(…) rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.”
Edição lida:
ROSA, João Guimarães, Primeiras estórias, Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros, vol. 11, 190 p., Editora Nova Fronteira S.A., 1ª edição, 2008.