Problemas de gênero: feminismo e subversão em Judith Butler, parte I – Por Ariadne Marinho
“À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo”.
Ariadne Marinho é historiadora, pesquisadora e mãe de Dionísio e Tom. Cuidadora da gata-idosa Cavalo de Fogo e da jovem cachorrinha Frau Caramello. Doutora em História pela UFMT.
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Problemas de gênero: feminismo e subversão em Judith Butler, parte I
Judith Butler é uma filósofa estadunidense que discute as teorias contemporâneas do feminismo e a teoria queer. Na obra “Problema de gênero”, a intelectual cria o conceito de “performance de gênero”, por meio do qual afirma que é a forma de agir, de vestir-se e de comportar-se, que se define o gênero de uma pessoa. É o que podemos chamar de ‘gênero fluído’, vale dizer, em que a/o sujeita/o não é determinado única e exclusivamente pelo sexo de seu nascimento. Butler assinala que “se o gênero são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado”, então não “se pode dizer que ele decorra de um sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite lógico. A distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos” (BUTLER, 2017, p. 15). É bem verdade que desde Simone de Beauvoir as pensadoras feministas desconsideram a biologia/fisiologia como fator de condicionamento maior enquanto destino social de uma pessoa, nomeadamente da mulher. Na atualidade os debates feministas sobre o significado de “gênero” lidam com um problema semelhante, ao mesmo tempo filosófico – de conceituação, de fundamento teórico do conceito – e político – de legitimação de suas reivindicações, legitimação social – qual seja, a de “como se sua indeterminação pudesse culminar finalmente num fracasso do feminismo” (BUTLER, 2017, p. 07).
Para Butler,
“Em sua essência, a teoria feminista tem presumido que existe uma identidade definida, compreendida pela categoria de mulheres, que não só deflagra os interesses e objetivos feministas no interior de seu próprio discurso, mas constitui o sujeito mesmo em nome de quem a representação política é almejada. Mas política e representação são termos polêmicos. Por um lado, a representação serve como termo operacional no seio de um processo político que busca estender visibilidade e legitimidade às mulheres como sujeitos políticos; por outro lado, a representação e a função normativa de uma linguagem que revelaria ou distorceria o que é tido como verdadeiro sobre a categoria das mulheres. Para a teoria feminista, o desenvolvimento de uma linguagem capaz de representá-las completa ou adequadamente pareceu necessário, a fim de promover a visibilidade política das mulheres era mal representada ou simplesmente não representada” (BUTLER, 2017, p.17-8).
Assim, continua Butler, foi Michel Foucault quem descreveu o sistema jurídico de poder que “produzem os sujeitos que consequentemente passam a representar. As noções jurídicas de poder parecem regular a vida política em termos puramente negativos – isto é, por meio da limitação, proibição, regulamentação, controle e mesmo “proteção” dos indivíduos relacionados àquela estrutura política, mediante uma ação contingente e retratável de escolha” (BUTLER, 2017, p.18-9). Deste modo, para a filósoa, o/a “sujeito/a” torna-se fundamental para a compreensão do que seja “política”, notadamente para a política feminista. No entanto, em um sistema patriarcal, os/as sujeitos/as jurídicos forçam a exclusão e/ou o silenciamento de determinados/as sujeitos/as da estrutura jurídica formada pela política.
“Em outras palavras, a construção política do sujeito procede vinculada a certos objetivos de legitimação e de exclusão, e essas operações políticas são efetivamente ocultas e naturalizadas por uma análise política que toma as estruturas jurídicas como seu fundamento. O poder jurídico ‘produz’ inevitavelmente o que alega meramente representar; consequentemente, a política tem de se preocupar com essa função dual do poder: jurídica e produtiva. Com efeito, a lei produz e depois oculta a noção de ‘sujeito perante a lei’, de modo a invocar essa formação discursiva como premissa básica natural que legitima, subsequentemente, a própria hegemonia reguladora da lei. Não basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamente na linguagem e na política” (BUTLER, 2017, p. 20; grifos nossos).
O gênero, portanto, “não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado” defende Butler. Pois, “[…] tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos” (idem, p. 25). Logo, a função do gênero seria produzir a falsa noção de estabilidade, em que a matriz heterossexual estaria assegurada por dois sexos fixos e coerentes, irremovíveis, que se opõem e se complementam como todas as oposições e binarismos vigentes no interior do pensamento ocidental: macho x fêmea, homem x mulher, masculino x feminino, pênis x vagina etc. Existe em nossa sociedade toda uma aparelhagem discursiva – que atravessa as práticas e as representações – que mantem tal ordem das coisas.
E como se daria essa manutenção? Pela repetição de atos, gestos e signos, dentro e desde o âmbito cultural, reforçando a construção dos corpos como unicamente masculinos ou femininos, modelando-os como expressão material de um pensamento heteronormativo. Trata-se, portanto, de uma questão de performatividade. Para Butler, gênero é um ato intencional, um gesto performativo que produz significados (PISCITELLI, 2002). Por isso, é ato político. E, por extensão, a sua subversão é uma subversão política, é rebeldia.
Referências
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão a identidade. Tradução Renato Aguiar. Editora: Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2017.
PISCITELLI, Adriana. “Re-criando a (categoria) mulher?”. In: ALGRANTI, L.M. et al. A prática feminista e o conceito de gênero. Campinas: IFCH/UNICAMP, Textos Didáticos, n.48, nov. 2002; pp. 8-41.
(Imagem de capa: Manequim casal 2220/ 3000).