Professor: o enlouquecido pela sociedade – Por Luana Costa
Luana Costa é escritora, artista, professora e pesquisadora. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT, Mestra em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF e Graduada em Letras – Português/Espanhol e respectivas Literaturas pela UFMT. Foi vencedora de dois prêmios literários pelo grupo Editorial Scortecci – SP. Publicou seus textos em livros, revistas e antologias literárias, sendo também idealizadora e ex-editora da Revista Literária Borboletras. Desde 2011 trabalha e reside no Estado do Rio de Janeiro. Apresentou-se, junto ao artista Jone Castilho, em inúmeras edições do CEP 20.000 (Centro de experimentação poética) liderado pelo poeta Ricardo Chacal. Atualmente, tem-se dedicado à escrita de haicais.
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Professor: o enlouquecido pela sociedade
Quando recebi o convite para escrever para a Ruído Manifesto, fiquei a refletir sobre o que de verdadeiro e significativo poderia trazer à luz para essa revista, bem como qual pensamento levaria a público para que juntos – editores, escritora e leitores, pudéssemos nos deleitar nas reentrâncias de uma imagem concebida no nascedouro de uma palavra poética. Ocorre que, há tempos, a Criação, em seu sentido mais fecundo e maiúsculo, tornou-se um anátema em minha existência. Pouco me lembro da última vez em que escrevi, no auspício de um ócio criativo, um conto, um poema, um ensaio. É vaga a lembrança de quando me regozijei profundamente em uma leitura, inebriando-me neste tenro e delicado direito que é o Sonhar.
Tal fato se dá por uma razão indubitável: a violência do cotidiano tem me embrutecido de tal maneira, que o ato de escrever e ler Literatura vem se convertendo, dia após dia, apenas em uma visão esfumaçada, utópica e escurecida forçosamente pela cruel busca pela sobrevivência. Ora, apaixonada pela palavra e pela arte, cursei, no início dos anos 2000 e no auge de minha pueril juventude (eram outros tempos) Licenciatura em Letras – Português, Espanhol e respectivas Literaturas; concluí o Mestrado em Artes; e tornei-me uma sobrevivente desde então.
Permitam-me avançar este texto detendo-me no significado das palavras. O vocábulo sobrevivente, do latim supervivens, significa “que ou aquele que enfrenta e subsiste a qualquer tipo de condição adversa”; “que ou aquele que permanece vivo depois da morte de outras (s) pessoa (s); “que ou aquele que escapou da morte em combate, catástrofe, desastre. ”
Quero deixar claro aqui que a palavra sobrevivente, escolhida neste texto, não pretende ser uma imagem metafórica para ajudar o leitor a visualizar o significado do que digo. Ela é mesmo o próprio sentido do que pronuncio. Pois tenho, desde o prelúdio daqueles anos, enfrentado e subsistido às condições mais adversas que o Sistema Educacional Brasileiro – e por que não dizer, essa catástrofe – pôde de modo perverso me proporcionar; tenho permanecido viva à(s) morte(s) de muitos outros professores. Pode-se matar um sujeito de vários modos – não apenas fisicamente, mas espiritual e psiquicamente. Perdi a conta de quantos colegas de trabalho vi serem desumanizados, demitidos, exonerados, convertidos em mortos-vivos e afastados, por exaustão, perda de voz, burnout, depressão e os mais degradantes quadros físicos e clínicos que se pode imaginar. E por quais razões compartilho tais fatos nessa escrita que se desejava poética?
Recentemente, a profissão Professor foi matéria da Revista Carta Capital, em um texto de Mariana Serafini, intitulado “Apagão de professores”. Nele, a autora constatou um fato alarmante: ao menos 58% dos alunos que cursam licenciatura, destinados à formação docente, desistem antes de receberem o diploma. Em um texto que revela o desprestígio da carreira docente, sua precarização, o trabalho extenuante, ausência de perspectivas e a violência do Estado Brasileiro, somos convidados a pensar sobre a profissão Professor, contemplando seu completo apagamento, como anunciado pela autora.
No entanto, para além desse desaparecimento do Professor, passei a vislumbrar um destino mais atordoante do que uma noite eterna e melancólica enraizada na paisagem do País. Vejo uma tragédia anunciada cuja presença já é impreterível e notável: o enlouquecimento do professorado. Assim como a sociedade fez suicidar-se um Van Gogh – como brilhantemente escreveu Antonin Artaud em 1947 – vejo a sociedade brasileira e todo seu sistema educacional esforçar-se para um embrutecimento do professor que não apenas drena o sangue, vampiriza e mortifica, mas perverte a lucidez, deteriora a consciência e o espírito humano e, por essa razão, também enlouquece.
Tendo-se recusado a se tornar cúmplice da sujeira corrupta na qual mergulha este País; tendo preferido, assim como o famoso pintor holandês, assar uma mão, ou cortar a própria orelha a viver no crepúsculo do obscurantismo e da ignorância, o professor não apenas paga por sua escolha com a sobrevida que lhe resta, mas também é lançado no abismo de uma loucura institucionalizada, que o amordaça e o impede de dizer verdades insuportáveis. Pois, afinal, o que é um louco senão um sujeito esquecido e desprezado cuja sociedade se nega para sempre a escutar?
14 de fevereiro de 2024.