Quando o gênero é a causa da morte – Por Ariadne Marinho
“À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo”.
Ariadne Marinho é historiadora, pesquisadora e mãe de Dionísio e Tom. Cuidadora da gata-idosa Cavalo de Fogo e da jovem cachorrinha Frau Caramello. Doutora em História pela UFMT.
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Quando o gênero é a causa da morte
Uma reportagem lida recentemente, escrita com base nos estudos do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), e publicada na globo.com, carregava uma chamada chocante, mas muito familiar: de que o “Aumento dos feminicídios no Brasil mostra que mulheres ainda não conquistaram o direito à vida”[1]. De fato, ao lermos ou assistirmos aos jornais diariamente deparamo-nos com a notícia de um ou mais crimes de feminicídio. Uma triste realidade que só reforça aquilo que constatamos faz tempo: de que vivemos em uma sociedade extremamente violenta, machista, misógina e racista.
O conceito de “feminicídio” foi formulado pela pesquisadora sul-africana, Diana Russel (1938-2020), no distante ano de 1976. A socióloga e ativista feminista afirmava que a motivação masculina para o assassinato de mulheres, um ato de inequívoco caráter hediondo, era fundamentalmente diferente do homicídio comum. Pois, baseava-se no ódio e insegurança com relação ao gênero oposto, com frequência vinculado ao desejo do homem em controlar e submeter – ao seu domínio e capricho – as mulheres.
No Brasil, em 2015 promulgou-se a lei nº 13.140, que qualificou o crime de hominicídio – previsto pelo artigo 121 do código penal brasileiro – contra mulheres em feminicídio, dobrando assim a sua punição, que atualmente oscila entre 12 e 30 anos de reclusão. Ora, nosso país ocupa o 5º lugar no ranking mundial de feminicídios, atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia, países que reconhecem a existência dessa prática. Dados oficiais mostram que 11 a 13 mulheres são assassinadas por dia em território nacional. E esses indicadores infelizmente tendem a aumentar. De acordo com o IPEA, a morte por motivo de gênero cresce a cada ano, embora seus números sofram uma significativa variação em diferentes regiões brasileiras. O país tem enfrentado desafios gritantes com relação a esse problema, e o feminicídio é uma preocupação séria não apenas para a sociedade brasileira como (óbvio) também para organizações internacionais que defendem os direitos das mulheres.
Assim, o assassinato de mulheres não se confunde com a violência em geral ou com qualquer outro ato de criminalidade. Sabemos que a maior parte das mortes são efetuadas por ex-companheiros, dentro de casa, que entre outros motivos fúteis não aceitam o término da relação conjugal. Destaca-se igualmente o aumento substancial do uso de armas brancas. Mas, devemos questionar, o que está por do feminicídio? O que estimula a frequente violência doméstica, física, psicológica, emocional, sexual? Muitos outros abusos são menosprezados pelo corporativismo machista das instituições de poder, como a polícia e a justiça. Para o Laboratório de Estudos de Feminicídios (LESFEM), com base nas informações do Monitor de Feminicídios no Brasil (MFB), em quase 60% dos crimes de feminicídio no país, no período entre janeiro e julho de 2023, as mulheres vítimas já tinham registrado boletins de ocorrências e apresentavam medidas protetivas. E “domingo é o dia da semana com mais ocorrências de feminicídios” [2]. Hoje, domingo, é dia de descanso para algumas/uns. Mas também é dia de terror, de sofrimentos e abusos para muitas.
Reafirmo o dever existencial de desconstruir a ideologia de dominação de gênero, que culmina nas práticas extremas de violação cotidiana contra a mulher. Práticas e ideologia que submetem os corpos femininos (incluindo aqui os corpos das pessoas trans) aos desejos e veleidades dos homens, carregadas de uma representação simbólica e social que normaliza a violência e o abuso. Não se trata apenas da morte de uma mulher, ou de mais uma mulher, mas de uma manipulação aberta que nos aniquila. Domingo é dia de morte para muitas.
[2] Ver: https://sites.uel.br/lesfem/brasil-registra-1-153-feminicidios-ate-julho-de-2023/