Quatro contos de Natânia Lopes
Natânia Lopes é Doutora e Mestre em Ciências Sociais com foco em Antropologia (UERJ). Pós doutoranda em Letras (UFF). Putativista na Rede Brasileira de Prostitutas e Coletivo Puta Davida. Estudante de esquizoanálise na Escola Nômade de Filosofia.
***
Medo da Febre
Bento começou a ficar febril por volta da meia noite. E junto com a elevação da sua temperatura funciona a velocidade dos meus intestinos.
– Já tá com caganeira? – Perguntou Lucas da porta do banheiro- Guarda o seu nervosismo pra quando realmente precisar. Que besteira! Não é nada.
– Você acha que algum dia nós vamos “realmente precisar”?
Não há paz.
O pânico é uma vala funda. Buraco de minhoca que eu não ouso atravessar.
– Escreve do lugar de uma mãe que assassina o filho e está confinada num hospital psiquiátrico – disse a Marta.
– De jeito nenhum.
Mas até que seria fácil. Pensar no filho morto acometido por doença ou acidente é mais apavorante. Agora mesmo hesito em escrever estas palavras, se por acaso tiverem elas um gradiente capaz de atrair o que dizem…
Decido brigar pelo sentido. Sigo. Nutrindo a convicção de que estou no veio certo de uma corrente marítima amornada. E, como outras correntezas concorrem com essa, a ela se misturam, atravessam, com ela se chocam, nela se transformam, convém saber mudar de lugar para
se perder com delicadeza.
Bento quente.
Deitamo-nos, os três, na nossa cama. Eu abraço muito a criança para sentir sua mudança de temperatura, e durante algum tempo estou com meu nariz colado ao seu, deitados um de frente para o outro, no travesseiro. Sinto o ar quente sair das suas narinas e entrar diretamente nas minhas. Passo a puxar o ar quente. Assim também empurro o ar que respiro até o fundo dos seus pulmões.
Pouco tempo depois sinto minha boca formigar. Tenho um pouco de febre e meu filho tende à temperatura normal.
Quando solto sua mãozinha, que é o que mais esquenta junto com a testa, ela volta a pelar, então a envolvo com palma da minha mão a mão dele e trocamos calor até o equilíbrio. Minha outra palma, artificialmente esfriada espalmada na parede, sobre a cabeceira, pouso na testa do menino.
Muita pele nossa encostada.
Até que a febre cedeu completamente. Dormimos. A cada meia hora acordo pra checar. Está bem.
Junto à sorte de ver a febre regredir até não mais voltar, o trabalho de dar as colheradas de mel e própolis. Duas gotas de própolis mexidinhos com as pontas dos dentes de um garfo, para não amargar. Gargarejo com água e sal. Vitamina C. Comer bem. Lanchar bem. Frutas, legumes, proteínas. Alguma coisa verde como brócolis. Azeite. Feijão fresco.
*
Sereno também é chuva
-Sereno também é chuva, ela me disse antes que eu saísse pela porta dos fundos. “Sereno também é chuva” -fiquei matutando. Enquanto minha pele orvalhada mostrava que não tinha nada o que entender sobre aquilo, ou desentender. Segui o caminho que tinha planejado fazer. Nunca fui muito de improvisar. Decidia tudo de antemão, ansioso, querendo fugir de mim mesmo.
Ela tinha um jeito de prender o cabelo com o lápis enquanto olhava a cafeteira funcionar, ou o microondas, esperando, entre uma coisa e outra, que o tempo se consumasse. Ela nunca tinha pressa. Talvez soubesse no íntimo que os acontecimentos se dobravam à sua atmosfera, como um buraco negro deformando a luz.
Ao mesmo tempo, parecia querer sempre o justo, o certo. Se nublava o céu, queria chuva. De tal modo que, em algum ponto daquela sintonia perfeita, eu me perdia tentando entender o que teria vindo antes; se o humor do céu ou o dela. Não tem o que entender ou desentender aí, ela falava sempre. Como se fosse tudo muito simples. A coisa mais simples do mundo. E era mesmo.
-Pense menos e sinta mais.
Quando nos deitávamos exaustos na cama, fosse de amor ou de trabalho (e nosso amor sempre tinha trabalho, e nosso trabalho, amor), ela dizia, quase sem mover a boca, que o seu corpo já tinha ido dormir. E quando mordia uma fruta suculenta, ou quando abria com a faca o pão ainda quente da padaria:
-Era exatamente isso o que eu queria comer.
Ela mastigava de olhos fechados e beijava de olhos abertos. Sentia o cheiro das coisas antes de mim. Às vezes cismava com um cheiro de queimado que eu nunca sentia, e me dava medo de morrer consumido por um incêndio vindo de algum curto-circuito na nossa casa, uma faísca oculta acendendo os materiais errados, espalhando fogo por dentro das paredes. Quando entendeu que eu tinha medo, passou a dizer, sorrindo:
-Levanta daí e vai procurar esse fogo!
-Mas não tem fogo nenhum, a gente não sabe disso?
-E você sabe?
Silêncio.
-Cada um faz o que precisa pra ter paz, Miguel.
E eu vagava pela casa farejando, confuso, alheio às pistas.
-Primeiro a salvação, depois o julgamento, ela dizia -blasfema, acesa, magnética.
Tinha enfim chegado a hora do meu julgamento. E eu saí pela porta dos fundos naquela madrugada fria, o peito já apertando de saudade. Não sabia quem tinha decidido aquilo (que eu deveria ir embora); se eu, ela, ou… não sei.
Dobrando a esquina, vi homens que queimavam alguma coisa dentro de um latão. A língua de fumaça fazendo frente à água que descia do céu sem que eles percebessem. Minha roupa já ia se colando ao corpo.
Só quando resolvi improvisar e dobrei meu caminho na direção do acontecimento que não podia mais ignorar, foi que eu senti como se tivesse sido despertado por aquele cheiro que vinha se insinuando desde o início dos tempos. Os homens quiseram me parar, mal encarados, tumultuosos. E enfim assustados, bateram em retirada. Cheguei bem perto do latão.
O sereno apagou o fogo de repente com a autoridade das coisas sãs. Dentro, materiais diversos haviam sido fundidos: tecidos, couros, talvez cabelo de mulher. Meu estômago se revirou num único embrulho. Cessaram os meus cálculos. As ponderações se calaram. E eu voltei pra casa sem saber o que ia encontrar.
Quando entrei, ouvi a tv que falava sozinha, na sala. A porta dos fundos por onde eu havia saído ainda estava aberta, deixando entrar o vento da noite que molhava o chão. Não havia nenhum vestígio dela.
Em desespero, quis botar fogo era em tudo!
Peguei o álcool, encharquei o sofá, a cama, as cortinas. E deixei um fósforo aceso inflamando cada um dos pontos. Diligente na minha dor, abri o gás das quatro bocas do fogão e saí outra vez pela porta dos fundos.
Meus passos iam agora sem governo, arrastados pelo próprio chão. Os pés que me têm subiram uma ladeira íngreme. E foi aí e só então que eu saí da fundura daquele latão escuro, deixando para trás os escombros e a lama.
Era fuligem por toda parte.
Quando pude finalmente ver o sol, amanheceu. Havia uma mesa posta num espaço aberto, maior do que uma varanda, fosse talvez um parque ou um descampado ladeando a autoestrada. Fumaça mansa de pão e de café. Cheiro de conforto a plenos pulmões. Ela mastigando de olhos fechados. Senti fome. Pela primeira vez.
*
Maria de cima, Maria de baixo
Era uma vez uma mulher que andava olhando para o chão. Não era uma vez, na verdade. Eram muitas as vezes em que isso se dava. Quase toda vez era assim: olhos baixos, o foco na quina do meio fio enquanto ia pela rua, não via ninguém que cruzasse seu caminho. Era uma mulher avantajada, cavalar. Tinha um tanto mais de dois metros de altura. Passava com dificuldade pelas portas; tinha sempre que se abaixar. Seu nome era Maria. Maria com vergonha de ser tão gigantona, fazia o corpo se envergar numa postura lamentável. Punha a barriga para a frente, as nádegas para dentro. O jeito da cabeça parecia querer anular o pescoço. E acorcundava o alto das costas, de forma consciente e planejada, a fim de parecer menor. Vista de perfil, Maria era todinha um ponto de interrogação.
Observava o chão concentrada nas coisas pequenas, querendo às vezes ser formiga ou outro bicho miúdo, invejando tudo o que estava lá embaixo: papel de bala, poeira, folha seca. Ela pensava que se fosse homem não seria tão ruim aquela proporção do seu corpo em ralação ao espaço. Podia até ser que fosse bom. Ouviria de mocinhas sorridentes que deveria jogar basquete. Alcançaria coisas no alto dos armários com facilidade para criar uma aura de gentilezas heroicas. E satisfaria a expectativa esdrúxula de tamanho que ronda todos os homens.
Mas sendo mulher era foda! Pois esperavam dela que fosse delicada. Que tivesse mãos de pele macia, dedos finos e unhas feitas. E Maria tinha aquelas mãos de chumbo, com articulações tão robustas unindo os segmentos dos dedos.
Seus sapatos eram feitos sob medida. Suas roupas não lhe caiam bem.
Um dia, olhando para baixo como sempre fazia, deparou-se com um rosto. Coisa que quase não via por ali. Um rosto naquele lugar desabitado; tão perto do chão… A mulher pequenina, que também se chamava Maria, olhava para cima, aspirando as alturas. Por isso as Marias, nomeadas vulgarmente na sua geração de mulheres de vinte e tantos, ou trinta e poucos anos, cruzaram seus olhares num descobrimento mútuo. Maria queria ser como Maria, que olhando de volta queria ser como Maria também.
A Maria de baixo tinha se fartado de piadas sobre a sua estatura. Ninguém respeitava uma mulher tão pequena. Talvez, se fosse homem, sua vida fosse outra. Que os homens são tão encorajados a tudo… tem seus egos tão alimentados e fortalecidos ao longo da vida que nada lhes passa mal. Podia até ser comediante, se fosse homem, anão de circo… Podia rir de si mesmo até encolher o riso dos outros e crescer diante deles, chegando a parecer enorme.
Mas sendo mulher era de se esperar que cumprisse as belezas de sempre. Ter um certo tamanho de mulher… Maria tinha o tamanho das criancinhas. Era obrigada a estar entre elas. E criança, como se sabe, não perdoa. Por isso Maria olhava para cima, esticava a coluna o mais que podia, evitando as indiscrições dos pestinhas. Os rostos altos que via, por outro lado, não devolviam nunca a mirada. Educadamente a evitavam, tentando ensinar seus filhos a conter a sua bisbilhotice.
Foi assim até que chegaram aqueles olhos que vinham quase de dentro das nuvens, voltados diretamente para ela, considerando sem constrangimentos o lugar onde ela estava, sugerindo aceitação e até interesse por aquele seu lugarzinho. Atirados do céu como uma lança inofensiva, os olhos que a fitavam pareciam de Deus. Deus era mulher.
Um conhecido de uma delas, que passava pela mesma calçada, caçoou, cumprimentando: “impossível não notar Maria!” As duas olharam para ver quem era o imbecil. Maria de cima foi quem o reconheceu.
A Maria de baixo sorriu para ela com empatia. E assim foi que pela primeira vez essa Maria pequenina conseguiu se projetar para o alto. Tão alto a ponto de alcançar a Maria. Surpresa, notou que lá em cima tinha ela mesma: Maria com dor de crescimento. Maria com dor. Disse para a grandalhona: “também me chamo Maria“. E a Maria do alto não soube se era verdade. Tinha adquirido o hábito de desconfiar. Mas viu na outra cumplicidade, e imaginou dores suas no corpo troncudo da anãzinha.
Naquele mesmo instante, tornaram-se amigas e viram que poderiam trocar de lugar. Por isso é que a Maria de baixo foi quem acenou para o imbecil, conhecido da Maria de cima.
*
Visita à casa do mágico
Logo após o muro chapiscado havia um jardim normal.
E depois uma varanda comum: um alpendre em cima, um assoalho embaixo, onde um cachorro de bunda ossuda dormia enrodilhado como os cães frequentemente dormem.
Ao atravessar a varanda, não tinha focinho curioso que viesse tocar, úmido, as pernas do visitante. O cão, que na verdade era uma cadela, permanecia enroscada imóvel, como se ausente de desejo ou em sono profundo, ou como se a paisagem tivesse sido cristalizada; uma pepita de tempo, uma mônada de duração, retrato.
Abrindo a porta era a sala.
Purpurina de poeira animando a claridade que entrava enviesada pela janela de vidro fechada. A luz projetando seu contorno no carpete; retângulo de buraco que virava trapézio de amarelo. Um x de sombra no meio.
Na parede de fundo do cômodo, oposta e distante da porta por cerca de quatro metros, se via um quadrinho dependurado, torto, onde uma casa de quintal gramado tinha um cão de pé sobre duas patas equilibrando uma bolinha no nariz. Um jambeiro em flor com um balanço feito de pneu. Arabescos de fumaça subindo da chaminé em direção a um sol multicolor, ou uma lua…
Se a pessoa demorasse muito a atenção no quadro, podia acabar se convencendo de que era a sala que estava torta.
Um vulto passa ligeiro no canto da vista. Seria um cachorro? Uma cedela? Um coelho? O móbile de estrelas, pendente do teto na margem esquerda da sala, girando lentamente parecia sugerir convite ao corredor, por onde se entrava mais fundo na casa.
Moedas espalhadas pelo chão perto do sofá, como se alguém tivesse se deitado ali, exausto, e as deixado cair do bolso da calçam ou da membrana invisível que forma o compartimento secreto atrás da orelha humana.
O ar incensado.
Contados a partir da frente, os cômodos eram apenas quatro; a sala ligava-se à cozinha por um corredor ao longo do qual tinha um quarto e um banheiro, dispostos simetricamente, um de frente para o outro. Mas, se os cômodos fossem contados desde trás em direção à porta de entrada, eram quase vinte. Porque certas portas se disfarçavam, miméticas, nas paredes voltadas para os fundos. Havia prolongamentos de casa dentro das paredes da casa. Um pouco como é em toda casa quando estamos habituados a percorrer seu perímetro de revés, no vaivém dos hábitos.
E a visita que precisasse usar o banheiro, envolvida por aquela atmosfera poderia ser tomada de uma curiosidade pueril: quem sabe abrir o armário sob o lavatório a fim de encontrar respostas ou intensificar o sabor das dúvidas. Veria: escova e pasta de dentes, uma colônia dessas compradas em farmácia, creme para cabelo e uma caixa.
Na caixa um toco de batom, lápis de olho, tampinha de plástico, carga de caneta mastigada, fio dental, cola para cílios, uma carta de baralho: um Às! Que se bem que fosse de ouro seria incapaz de distrair o nariz do cheiro de azinhavre vindo dos destroços de bijuterias.
Decido lavar as mãos para me livrar deste fedor que detesto.
Os dedos pegajosos de líquidos que escaparam dos frascos. Da bica pinga uma gota absurda, distorcida, torcida, de pano, que arrasta um fluxo de lenços coloridos com aquele perfume de espetáculo. São floridos, puídos, esgarçados, de bolinhas, tristes, bobos, perfeitos… amarrados uns nos outros por pequenos nós. Elos tão firmes que apenas o sopro encantado pela palavra mágica poderia afrouxar.
Lenço nó lenço nó lenço nó lenço nó lenço nó lenço nó lenço nó…
Enquanto me detenho na busca da palavra certa, puxando aquela corrente de lenços que já transborda da pia e cai sobre os meus pés e vai crescendo montanha de dúvida charada que se avoluma, lenço nó lenço nó lenço nó… vou agora atirando braçadas largas por cima do ombro e o banheiro já afogado em tanto pano eu sem fôlego exaurida pelo truque indecifrável da casa oculto e cínico por detrás do simples fazer cotidiano que é lavar as mãos.
Lenço nó lenço nó lenço nó lenço nó, lenço, nó lenço…
Ainda que soubesse a palavra, não haveria espaço para o sopro.
Os lenços entupindo meu nariz, enchendo minha boca, invadindo meu corpo, entrando pelos poros saturados de nós até que, abruptamente;
Os lenços desaparecem. Sem quê nem porque, cessaram. Sumiram.
Os elos de pano cimentados pelo enigma, bem como seu perfume de suor e almíscar, desaparecem.
Então pude sair esquecida do constrangimento de ter me demorado no banheiro mais do que o tempo habitual.
Atravesso a cozinha.
Nos fundos da casa tinha um gramado bonito. Quinquilharias amontoadas como tripés, malas, caixas e gaiolas. Um tonel de metal que duas cadeiras de plástico postas à volta, mais uma taça com um resto de vinho pousada em cima, transformavam em mesinha. Um jambeiro em flor com balanço de pneu. No céu, um sol multicolor ou uma lua. E lá vem a cadela sobre duas patas equilibrando a bolinha.