Quatro poemas de Adriana Linhares
Adriana Linhares nasceu no Rio de Janeiro em 1982. É poeta, “prô” de artes e mãe da Selena. Publica seu primeiro livro de poesias Atrás do não-dito em 2019 pela Fólio digital e participa da organização de saraus e do editorial do Fanzine Poesia Espiral desde 2005. Atualmente é mestranda no Programa de Pós-graduação em artes na UERJ.
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apraz-me estar com você nessa cidade, ele dizia
e mal sabia que a cidade se transformava para mim na voz do Melodia
naquele álbum pérola negra de 73: ano que descobri num mapa que renascia
queria cantar “tente passar pelo o que estou passando…”
mas só apontava umas belezas e curiosidades do rj para não dar muita “pinta”
aquela mureta, aquela feira
uma das florestas urbanas maiores do mundo na chuva
aquele botecão raiz com nome de bairro faiscando em nós
depois sp estadão, santa cecília, ondas de grafites no mar de prédios
ibira e ná ozzetti jogando feitiço
eu era outro lugar, outros lugares a sentir cada lugar
histórias engatadas pelos ziguezagues culturais
arrojos e cócegas da vida e dos vinhos
poderiam detalhar as direções em que suas mãos seguiam
mas tudo se fazia imponderável à cada toque
ou ao teu rosto em meio a cor nuvem cachimbo
como se estica esse arremesso?
como descrever raios de imensidão?
fui andando no dia seguinte
sem perceber que a alma cozinhava tanto contentamento
até que um monte de noites me exigiram
ser no mínimo palavreadas
mesmo se sabendo sagradas
de que jeito penetrar em tuas seriedades
se tornam-se quebradiças quando também as admiro?
é preciso aprender a estancar, eu pensei
o que me parece impossível quando emergem outros tipos de desejos
como sabotar o que desbota, sustentar o que queima
nossa língua entrelaçada
a maioria dos poemas que ainda vou escrever me visitaram nesse mês de novembro
foram benzidos dentro da pintura do preto velho que você criou
enquanto eu te escrevo essa carta, quando não dormi e mesmo assim estou pronta
enquanto existe um lá que não conheço e não consigo recusar
no brinde de um domingo inventado quando invento de me perder
quando lembro do macio do interior dos seus olhos
será verde pulsar íntimo do fluxo de outro ser?
até que tempo o tempo concede?
apraz-me estar com você nessa cidade, ele dizia
mal eu sabia que me tornara ruas, avenidas, praças, canteiros, arranha céus, marés
sinais e faróis ao estar com ele nessas cidades.
***
vértebra
não gravar letras e nomes
não decorar listas e números
um jeito próprio de eleger memórias-pele
como o desenho de tuas digitais que parecem não casuais,
a arquitetura de uma escuta-pólen que atravessou algum inverno
ou por exemplo
o santuário que foi olhar aquela possibilidade quase perdida
não há espaço para acumular outros nexos
enquanto observo as gargalhadas em terremoto de todas as crianças de um país abandonado
ou no momento em que percebo os pasmos da manhã
cada vez mais sem ar com a vida se desdobrando em liberdades cifradas
é uma guerrilha esse corpo circense de revoadas bárbaras
onde palavras garoam
sem domínio ou dossiê
é delicada a vértebra de uma rebelião que se levanta diariamente
*
A vida reconciliada
potencialmente desvairada
às vezes no banco de trás
explodida nossa
lançada sem disfarce
no subúrbio dos ímpetos
desmemoriada e fatal
sequestrada do rebanho
contrariada no afeto
organizada sem autoridade
ofuscada com detalhes
A vida exatamente não literal
*
silêncio retícula desse tempo
entranhado de va p o r e s
algumas disfunções em des vario
potencializado na medula das coisas ao redor
silêncio louvado como quem assovia sem perigo
como quem disseca sua própria viga para em nada se sustentar
ausência-inundação
o
s
i
l
ê
n
c
i
o
m
u
i
t
o
s
e
cisma
m
a casa fundou na mudez um idioma
nada explícito
de hálitos halos
percorrências em banhos
incrustada na biologia das coisas sem pressa em serem arrumadas
depurando a lentidão em suas quinas e rejuntes
na presentificação de calmarias estrondosas
a casa que despedaça a duração-relógio
toada sem febre a
desatar pensamentos
solta
das coceiras do próprio caminho
descomunal em cada inominável silêncio
jogo tarô para o Silêncio caseiro quando ele aqui habita
a cigana Dele aconselha retirar da despensa as lógicas e alguns decoros
dispensar espessuras para em quietude cirandar-se
o silêncio-entidade
sacraliza algumas minúcias
como quebranto das intimidades
como quem entorna café para distrair as rasuras do que ainda não veio
benzedura dos retardos da discrição
palpável em cozimento
em recomposições
sem esmorecer da audácia de se não se tornar
e s c a s s o
mordendo cada nervo, cada nervo, o nervo de cada tudo
para em cada nada ressurgir
deslizando aceso – c o n s t i t u í d o
camadas e camadas de um ecossistema em imantação
na colagem dos dias
como uma acontecência rústica
despavimentada do habitual
coexistência profética
o
silêncio
aparição
que encarna, concentra
não prospectiva
o silêncio monumento
invocativo, provocativo
que cria santuários de um tempo sem captura, fibroso mas desacortinado
impermanência s
dos agoras
silênciorelicário
dermes em descanso
amplidão