Quatro poemas de Alexandra Maia
Alexandra Maia é carioca, poeta e produtora. Lançou em 2019, o livro de poemas Um objeto cortante (Numa Editora, Brasil / Gato Bravo editora, Portugal), que saiu também na Colômbia em 2020 pelo selo Nonada de poesia brasileira, da Ediciones Vestigio. Seu primeiro livro de poemas Coração na Boca foi editado pela 7Letras, em 1999. Publicou também 100 Anos de Poesia – Um Panorama da Poesia Brasileira no Século XX (com Claufe Rodrigues, O Verso Edições, 2000). Em 2020, começou a fazer as lives Poesia Livre no instagram @alexandramaia, uma série de entrevistas com poetas contemporâneos e homenagens a poetas consagrados. Em maio de 2022, o projeto chega à sua 100ª edição e vai virar podcast.
O poema “Pergunto aos amigos” é inédito. Os demais poemas integram Um objeto cortante.
***
O não dito
O não dito ocupa a casa
Um vaso de culpas decora a estante da sala
Certo desassossego serve de travesseiro na hora insone
em que fantasmas dançam sobre a cama do casal
que não se encosta
Cada um no seu canto
Toda uma vida no meio
*
Um desejo pode ser um objeto cortante
assim como uma ponte pode mais separar do que unir
Um objeto cortante dividiu minha paz
*
Creio que foi
“Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta…”
Eugénio de Andrade
Creio que foi o olhar
foi no olhar que me deitei
Um olhar tão claro
que fazia bem
deitar nele uma vida toda
Naquele olhar
o mundo não entrava
e eu era inteira ausência de mim
Eu me quedava naquele olhar
sabida em não saber
– querer era ter –
coberta pelo lençol das pálpebras
Teus olhos, grama verde
Um olhar
que congelou o tempo
me grudou na estrada
ladrilhou as noites
Navegando em teus olhos
pelos meus olhos verti
as gotas de um oceano
que secara em ti
*
Pergunto aos amigos
em que momento ficamos velhos
em que momento perdemos certa leveza
graça e apetite
quando ficamos ranzinzas
será no instante em que nos percebemos
ridículos numa roda de samba
o corpo mais lento menos sinuoso
que o acostumado sem ondulação
ou na preguiça que nos rende cinzas
ao sofá num dia de protestos?
talvez seja pelo olhar do outro
que o tempo entra e pesa
meu pai aos 80 anos
joga futebol religiosamente
duas vezes por semana
nem o marca-passo diminuiu seu ritmo
correr não dá mais
gol só se recebe o passe perfeito
não importa
o que importa é estar em campo
quiçá no prazer genuíno o tempo não entre
então em que momento se diz
não mais?
em que momento nossas ondas param de bater
fazendo com que areia e água do mar
virem mingau onde não se quer mais pisar?
____________________
(Fotografia: Cristiane Lemos [detalhe em p&b a partir do original colorido])