Quatro poemas de Carlos de Assumpção
Carlos de Assumpção é um poeta que atravessa gerações. Nascido em Tietê/SP, mora desde 1969 na cidade de Franca/SP. Atualmente com 95 anos, Assumpção recita de memória poemas autorais escritos entre a década de 1950 e os dias de hoje. A cada brado, sua voz/escrita reatualiza em nós a história, reavivando a ancestralidade negra que carregamos enquanto povo desta nação. Carlos de Assumpção traz do seio familiar a tradição oral e a participação em movimentos negros como formas de resistência. É formado em letras (português-francês) e direito pela Unesp e, em 2022, recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
“Não Pararei de Gritar – Poemas Reunidos”, publicado pela Companhia das Letras, é o livro mais recente do autor. Parte da sua trajetória está documentada no filme “Carlos de Assumpção: Protesto” (https://www.youtube.com/watch?v=HQrg4OwL2qM&t=66s), dirigido por Alberto Pucheu. Em Franca, participa do “Sarau Protesto” junto a outres artistas.
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O caso de tia Ana
Batem na porta da rua
Vai atender a quem bateu
— Vá chamar um dos donos da casa
seu patrão ou sua patroa
— A dona da casa sou eu
A pessoa muda de tom de repente
— Oh senhora me perdoa
Esta cena se repete frequentemente
*
Fênix
Riram de nossos valores
Apagaram os nossos sonhos
Pisaram a nossa dignidade
Sufocaram a nossa voz
Nos transformaram em uma ilha
Cercada de mentiras por todos os lados
Nos dividiram
Nos puseram à margem de tudo
Irmãos
Precisamos reconstruir a nossa vida
Precisamos conquistar nosso lugar
Na casa que um dia nós edificamos
E onde não conseguimos entrar
Precisamos reacender os nossos sonhos
Precisamos levantar a nossa voz
Precisamos derrubar
A muralha de rocha e cal
Que ergueram em torno de nós
*
Autorretrato
Eu sou a noite
Sem destino
Esbofeteada pelo vento
Nesta selva branca
Noite
Que procura caminho
Como o faminto
Procura o pão
Noite
Que conserva
Orgulhosamente
A despeito de tudo
Um punhado de estrelas
Em cada mão
*
Cavalo dos Ancestrais
para a poeta Isabel Hirata
Minhas irmãs meus irmãos
Os ancestrais fazem de mim seu instrumento
Minha voz não é minha é voz dos ancestrais
Meus gestos não são meus são gestos dos ancestrais
A despeito de minha fragilidade
Os ancestrais fazem de mim seu instrumento
Me fazem portador de sua mensagem
Eles é que me mandam falar
Sobre a Mãe África violentada
Eles é que me mandam falar
Sobre tanto sangue derramado na travessia
Sobre tanto sangue derramado nas fazendas
Sobre tanto sangue derramado nas cidades
Sobre tanto sangue derramado nas lutas
Pela sua própria libertação e defesa desta terra
Eles é que me mandam falar
Sobre milhares e milhares de homens negros assassinados
Nas fazendas
Nos quilombos
Nas insurreições urbanas
Apesar de eu ser tão limitado
Os ancestrais fazem de mim seu instrumento
Me fazem portador de sua mensagem
Minhas irmãs meus irmãos
Esperam tanto de nós os ancestrais
Principalmente que sejamos dignos
Que sejamos dignos que sejamos dignos
De tanto sangue derramado
Principalmente que sejamos dignos
Que não nos curvemos
Que não nos entreguemos
Que continuemos a marcha da liberdade
Que ergamos novos quilombos sob o signo do amor
E da fraternidade
Para que germine
Para que floresça
Para que frutifique cada vez mais
Tanto sacrifício
Tanto sangue derramado