Quatro poemas de Constança Guimarães
Escritora mineira e jornalista, Constança Guimarães é autora de Como se fosse possível medir o tamanho do escuro (Urutau, 2020), Ombros caídos olhando pro Inferno (Urutau, 2017) e A sereia da contorno e outras histórias (Leme, 2017). Tem poemas e contos em revistas como a Gueto, Mirada, Germina e Torquato, entre outras.
Os poemas abaixo são do livro publicado em novembro 2020, Como se gente conseguisse medir o tamanho do escuro, Urutau.)
***
spoiler de uma mulher com cabelos brancos tingidos
tenho álbuns de retrato
de papel tenho vários anos
nas fotos minha mãe meu pai
minha filha também
no álbum que minha mãe fez
quando eu era bebê ela colou recortes
do jornal quando o homem chegou à lua e da criação da minissaia
num álbum de viagem
quando eu já era mãe
colei todas as recordações
tíquetes passagens mapas fotos
desenhos de minha filha
depois adulta viajei com minha mãe
fomos juntas ao fim do mundo
temos um álbum contando a jornada
ocorre que a cada visita aos álbuns
tenho várias idades
também fora
das fotografias
e assim as memórias são como são
registros
pontos de partida
*
foram felizes
ou não
ou nada
o lençol lavado
da cama do hotel de verão
não diz
sempre achei um mistério
chego hoje e está nublado
jogo minha mala no chão da suíte de casal
as toalhas arrumadas formam um cisne
pra que perder tanto tempo
velando uma dor que sei
que não vai embora
poderia fazer isso em casa
na minha cama suja sobre um chão poeirento
será que os hóspedes que estiveram aqui
beberam o uísque do frigobar ou a moça
nem precisou repor
é caro e nem me importo
abro duas garrafinhas e coloco no copo
com gelo três pedras
sento-me na beirada da cama amassando
o cisne branco a moça
penso eu pela primeira vez
podia ser uma moça a hóspede antes de mim
no hotel de verão
ela pode ter sido feliz
ou estaria de passagem
sempre achei que quem está de passagem não precisa
ser feliz ou triste
ainda
*
um
três janelas acesas contei
entre o escuro
enquanto respirava
não se apaga o registro ranhuras
na pele ou parede
entre o escuro vi
minha mão tateei as cicatrizes
mal fechadas no alto do ombro no olho roxo
no fundo das costas
caída vi você
sentado na sala vendo tevê
vi minhas costas tortas e meu olho
roxo depois de você dormindo
entre as fissuras
nem quando pintamos as paredes manchadas
de outra cor com tinta nova
ou quando trocamos chaves ouvindo música
ou quando você abre um vinho caro no jantar
a dor
está
na parte fosca
*
dois
O segundo
no qual decidimos em dúvida
deslocamos o degrau
mudamos o quarto ainda não
trocamos a lâmpada nem penduramos
a cortina os quadros esquecemos
a colcha no varal porque faz calor
sozinha do lado esquerdo da cama
há anos não me lembro era inverno
você veio rígido arfante talvez fosse um sonho
eu suava a sós molhada embaixo do teto seu cheiro
eu suava na feira meu cheiro você
veio jantar de repente
piquei os tomates
lavei o manjericão pescoço peitos vulva
era seu prato preferido
à noite sozinha na cama há anos me lembro
seu cheiro azeda
em mim
José Tadeu Gobbi
Que delicia constança ler teus textos. Há uma suave sinestesia com o que temos de mais íntimo. Bravos.
constanca
me deixou muito feliz sua leitura. Obrigada!!