Quatro poemas de D. Quispe
Escritor, professor de inglês e tradutor. Filho de imigrantes bolivianos, de raízes paulistanas e frutos cariocas, está constantemente alternando entre territórios linguístico-culturais. Apaixonado por natureza, museus, idiomas, e arte urbana, tem como o seu norte de escrita temas que abordam questões LGBT, feminismo, subjetividades na escola, e identidade étnico-racial. Participou de antologias poéticas no Brasil e no Chile e publicou um livro autoral de poemas em 2023. Atualmente desenvolve um projeto de Oficina Literária com professores de ensino fundamental e médio com o objetivo de criar uma antologia poética feita por docentes do ensino básico, retratando as subjetividades que permeiam o ambiente escolar.
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TUDO O QUE FINGI NÃO OUVIR
Fingia não ouvir
quando me chamavam de
viado baleia macaco.
Fingia não ouvir
quando me chamavam de
puta quatro olhos perna de saracura.
Fingi não ouvir sempre,
isso me parecia a melhor saída.
Escrever e desenhar acalmava as feridas,
meu diário se tornou a minha cura.
Às vezes contava ao vento
todos os nomes que me chamavam
menos pelo meu nome
passei a odiar tudo
nos outros e em mim
quem
sabe o vento
jogasse tudo
pra bem
longe de
mim.
Desenhos estranhos
e algumas palavras que ainda
me davam um certo conforto
me deram a coragem e ódio suficiente
pra fazer me olharem no olho.
E agora, de repente, todos sabem meu nome.
Seus corpos…meus poemas e desenhos
rasgados cortados…sangrando.
Baseado no artigo “Ataque com faca deixa alunos feridos em escola na Ilha do Governador”, jornal O Globo, 06 de maio de 2022
*
: BURACOS-FERIDAS
Todos nós temos buracos
que sangram: buceta,
nariz, boca, as feridas
no corpo, na alma.
Com o que você tampa
esses buracos do seu corpo-espírito?
Com órgãos genitais?
(ou às vezes o seu próprio braço
nas noites solitárias de orgasmo)
Com o que você tampa
esses buracos do seu corpo-espírito?
Com cigarro? Cada trago te ressuscita.
Será que cicatriza essas feridas?
Com o que você tampa
esses buracos do seu corpo-espírito?
O álcool será que te purifica
e deixa tudo mais leve?
E eu? Com o que tampo os buracos
do meu corpo-espírito?
Agora mesmo, enquanto escrevo
tampo minhas feridas com
palavras cor de sangue.
Desculpem se manchei a roupa de vocês.
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CORRENTEZA
Correnteza me leva
onde eu não tiver forças
para nadar mais.
Cada braçada
é uma palavra calada
com água fria e necessária
em que afoguei alguns
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~~~~~sentimentos insanos~~~~~
~~~~~demais para flutuarem~~~~
~~~~~~~~aos teus olhos~~~~~~~
– sobre o dia em que fui correndo me jogar
em um rio para esfriar o vulcão dentro de mim
e não machucar ninguém ao meu redor –
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FESTA DE ANIVERSÁRIO
Luz neon e balões.
Meu copo cheio, parece cerveja, mas é guaraná.
Vejo entrando um por um:
o engomadinho de escritório,
o camelô, até o catador de papelão,
todos entram para a festa.
Toca música alta, e quase não ouço
quando ela vem me convidar
“Quer companhia? Temos meninas bonitas”
Lembrei do dia em que eu voltava do trabalho,
assalariado com calça jeans e tênis preto,
ia por uma rua escura segurando a mão
da minha mãe e ela toda surpresa quando viu
uma porta aberta com balões em volta,
luz neon, música alta e me disse
“hijo, parece que ten una fiesta de aniversario”
Eu ri para dentro e passamos reto.
E assim seguem os dias, retos numa linha reta.
Comemorar mais, preciso
parar de voltar antes de meia noite, preciso
entortar mais, encher a cara, preciso
ver a espuma no copo, não na boca, preciso
esquecer o que fiz ontem e comemorar mais,
PRE-CI-SO.
Mas o fato é que nunca fui muito em festas
de aniversário e nem em puteiros e
nem fiquei bêbado tantas vezes quanto deveria
EU PRECISO COMEMORAR MAIS A VIDA.
Vem cá, quando é o seu aniversário?