Quatro poemas de Ellen Maria Vasconcellos
Ellen Maria Martins de Vasconcellos nasceu em Santos e hoje vive em Brasília. É editora de inglês e espanhol e tradutora. Estuda literatura contemporânea, comunidade e catástrofe no doutorado pela USP. É autora dos livros Chacharitas e gambuzinos (edição bilíngue, 2015) e Gravidade (2018), publicados pela ed. Patuá. Tem poemas e artigos publicados aqui e lá. Contato: http://ellenmartins.wixsite.com/home
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Diagnosis
(para Elza e Djanira)
Qual flor
desperta cedo
e sem sair do lugar
perambula por aí
respirando a curiosidade
dos que velhinhos
veem tudo como a primeira
e a última vez
Depois segue
recordando a vida
crianças pequerruchas
que se escondem debaixo da saia
da mãe e do pai
sentem medo
mas saltam no pescoço
agarrando sonhos
recolhendo os trapos e as roupas
pedaços de traumas
estendidos no varal
Caminha pela sala
o campo verde
lagos
busca o sol
dá a volta ao mundo
sem quase sair do eixo
girassol
Depois esquece
vegeta vendo televisão
repete qualquer coisa
sobre o artista da novela
parece que se alimenta de luz
pergunta sobre o que vai ter no almoço
e come pouco
Sofre arrancando os lábios
toma os remédios
morde com medo de morrer
sofre mastigando os dentes
sofre devorando o medo
e às vezes vomita
e briga com a morte
murcha
se banha vagarosamente
acariciando os infinitos lábios
que seu corpo enrugado construiu
escala montanhas com os dedos
a pele fina das pétalas
se perfuma
e cheira as costas da mão alheia
que lhe ajuda e lhe beija
veste algodão e agradece a noite
é hora das lágrimas escorrerem pela terra
hidratando os corações-sementes
dorme e sonha com os netos
imaginários
e algum fantasma
Parece que vai viver para sempre
e vai.
(Poema publicado no livro Gravidade, 2018, pela Ed. Patuá)
*
TV (marcas de poder)
veja com atenção:
eles homens sábios e sérios
estalam os dedos
pressionam as falanges assim
produzem um barulho que não se escuta
e as bordas das unhas contra a pele
desenham meia luas como chagas
agora levam um destes extremos à boca
mordem a beira do calo
com a ponta do dente
calmamente
e um movimento linguístico
lança o ínfimo excluído
pedaço de carne
para longe.
a câmera grava
e você
viu?
toda sua atenção em quase nada.
(Poema publicado na plaquete de abril da Vozes Versos, 2019, pela martelo casa editorial)
*
declama e ouvido
você analisa o poema sentado na cama
como quem faz um ditado
tece um discurso sobre a originalidade sintática
a potência dos últimos versos
o léxico, que léxico!
seus olhos pendem desde a página do livro
a algum lugar entre minha boca e nariz
escuto sua voz atentamente
como um aluno recém alfabetizado
escrevo a imagem primeiro com meus olhos
e sem que você se dê conta
os fecho pausadamente
a cada ponto final deste texto
penso que eles se desfalecerão
alguns anos antes ou depois
desse poema
dessa memória
(Poema do esquecido blog ritepramim.blogspot.com)
*
A insustentável delicadeza do ser
Ter a pele morena e os ossos brancos
ter o sangue vermelho e dar um sorriso amarelo
ficar roxa de raiva
verde de fome
azul de frio
e acreditar em auras negras
e não acreditar no racismo
nem por um momento
nem no pote de ouro
no fim do arco-íris.
(Poema publicado em Chacharitas & gambuzinos, em 2015, pela Ed. Patuá)