Quatro poemas de Inês Francisco Jacob
Inês Francisco Jacob (1992) nasceu em Lisboa. Licenciada pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), pós-graduada pela FCSH. Escreve desde que se lembra, mas foi a partir da adolescência que essa tarefa se tornou imprescindível. Tem poemas publicados nas revistas Apócrifa (Terças de Poesia Clandestina) e Telhados de Vidro, e costuma contribuir com textos para várias publicações online. Foi bolsista de criação literária da DGLAB durante o primeiro semestre de 2020. Sair de cena é o seu primeiro livro de poesia e foi editado pela não edições em 2020 (e pela brasileira Corsário-Satã em 2021). Maremorto, o segundo, foi publicado pela Alambique no fim de 2021.
O poema “ars moriendi” integra o livro Sair de cena e “39.” integra Maremorto. Os demais poemas são inéditos.
***
ars moriendi
em cada reflexo procuravas a tua sombra
não para retocares o silêncio
os olhos
os fragmentos de feno
mas para saberes se ainda tinhas
companhia
e eu já não estava lã
e eu já não era
uma sombra vestida de pernas e braços
nem mesmo assim os espelhos quebraram
eles sobrevivem a todas as nossas ausências
há sempre alguém que os renova com outro corpo
*
39.
uma vez
na intermitência de um mergulho
engoli um punhado de areia
e julguei ver jorrar
dos meus dentes
um cardume pequeno
era ali na minha boca
feita aquário
de peixe
sem veneno
que o mar acabava e eu não sabia
*
chamo de útero às pedras
verifico-lhes o cálcio dos pés
a cada socada do mar
a cada pontada que esse naufrágio
inevitável e cálido
trata de escrever à mão
com a caligrafia do sódio e do engenho
primitivo
nem tudo o que nos arde está em fogo
vivo
às vezes é apenas a sombra
da combustão
ou o icebergue da pele
em escanção aflita
implorando por um pedaço
de ar cristal e limpo
*
como um mosquito que me arrelia a porta para o ouvido
também estes dias sugam o meu sangue
gotinha a gotinha
salivam de açúcar os tapetes e as paredes – pequenos
apontamentos de assassinato –,
correm a contar aos amigos e vizinhos como o jantar
lhes caiu bem
sou devorada todos os dias
por todos estes dias
e não é sempre consensual
como esse mosquito que me mastiga sem pedir
autorização
também estes dias voam com asa pequena
pousam imberbes sobre as superfícies e planos
e aí queremos despedaçá-los com o chinelo
tropeçando nos ângulos mortos da casa
encontrando a sua toca
o seu esconderijo
por fim
onde repousam de barriga cheia
por todos esses dias
gota a gota
sou alimento de algum bicho