Quatro poemas de Isabella Martino
Isabella Martino é poeta e pesquisadora de poesia portuguesa na Unifesp-SP. Atualmente, trabalha com edição de projetos literários e de comunicação.
***
antes da catástrofe
cortar lenha carregar água
depois da catástrofe
cortar lenha carregar água
a grossa poeira marrom areando os cabelos
sobrepõe o estrago à vida em terra fresca
não há nada que um céu inteiro
não cubra
no azul o luto se aconchega
lembre-se: para cada perda
há um cão
em profundo sono
banhando-se ao sol
*
O que resta?
Raio os dedos neste papel de arrasto, este couro lento.
Atravesso com a outra mão as beiras.
Mapeio e escuto.
É pelo som, a oscilação do som dessa caneta, que encontro
minhas alturas.
Tenho carregado anos secos nos olhos.
Já não compreendo a ideia de escolha.
Não sei como tão rápido essa cama se fez
deserto de sal
Não sei nada dos mortos que fizeram a mesma pergunta
e não escaparam.
*
desfaça o laço, o grampo
longos os fios investigam a foice, a boca
espreita o nome do deserto
morre ao redor da língua
serpeia a nuca em silêncio
destece em tango o pensamento
rubra a noite golpeia os encontros do sonho
o perfume agulha a luz estria
a mulher avança
*
existe nas pupilas de andejo
pedras crivadas de um não ver
a mulher, horda à espera
a mulher, duplicata
da noite exausta
regressa à infância malograda
perfura nãos
alumbra o pequeno relógio
e pensa: morrerá nas coxias?
não.