Quatro poemas de Janete Manacá
Janete Manacá é uma incansável semeadora de poesias e semeia inclusive no deserto. Aprendeu com a Mãe Natureza, seu maior exemplo de amor. Há dias que acorda na lua outros no chão e o resto do tempo voa para conhecer outras dimensões, até a semente germinar, crescer e florescer para a vida celebrar.
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Foragida
entre surtos e ameaças
vivia sempre assustada
em suspeitos arranha-céus
sob efeito de ansiolíticos
fugia da própria sombra
feito vulto aprisionado
conseguiu sobreviver
ignorou as dores da alma
resistiu a duras palavras
indiferente o tempo passou
os filhos emancipados voaram
para além do aconchego do amor
romperam com o cordão umbilical
num breve adeus saíram do lar
entregaram-se às mãos do destino
viveu para os seus rebentos
sem medir nenhum esforço
dor consumindo e pés sangrando
restou a escuridão e a casa vazia
no chuveiro água quente sobre o corpo
carícia do amor que não existia
(URGÊNCIA POÉTICA: poesia em tempos de incerteza – Vol. I).
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Sacerdotisa da floresta
ainda sinto em meu copo a ardência
da fogueira da injustiça onde fui queimada
entre gritos e aplausos de insanidades
em nome de um deus inventado
representado por criaturas imponentes
devastaram vidas e conhecimentos
sobre o clarão do fogo crepitando
minhas vestes avermelhando
do sangue de pura inocência
eu era sacerdotisa da floresta
que com o poder da oralidade
manipulava poções de ervas
deram a esse tribunal criminoso
o inconveniente nome de Santa Inquisição
que matou com requintes de crueldade
homicidas, insanos, imorais
sentiam-se donos da verdade
falsos sacerdotes de suntuosas catedrais
fizeram do meu corpo cinzas
mas não atingiram a minha alma
que renascida continua a jornada
(MERGULHO POÉTICO: poesia em tempos de dor – Vol. II).
*
Mãe de leite
minhas primeiras lições de solidariedade
iniciaram-se logo após o meu nascimento
com uma rainha que aprendi a chamar de mãe
no pequeno povoado rural
a vida não era nada fácil
mas tinha quem nos ajudasse
éramos regidas pelas fases da lua
os quatro elementos, as quatro direções
as quatro estações, a vida coletiva
minha mãe teve muitos rebentos
filhos vistosos e saudáveis
parto normal, amparados pela parteira
dos seios o leite jorrava em abundância
para os filhos seus e os filhos das outras
todos nós tínhamos irmãos de leite
essas memórias de amor e desapego
ensinaram-me a dividir sempre
com o olhar distante da competição
é bem mais fácil segurar a mão
seguir lado a lado como iguais
para superar as desigualdades sociais
(ACONCHEGO POÉTICO: poesia em tempos de reflexão – Vol. III).
*
Viva
já quis tantas coisas na vida
fiz listas enormes de desejos
pedi até o impossível
como se a vida
se resumisse em querências
em volta do meu próprio umbigo
eram desejos tão fúteis
que mal beneficiavam meu ego
como se eu fosse o centro das atenções
por sorte eu nunca fui contemplada
os deuses tiveram misericórdia de mim
negaram tudo e por tanta bondade fui salva
o tempo passou fui resumindo a lista
pensava, repensava e cortava
a maturidade é um exercício de sabedoria
meus pedidos diminuíram
mas eram grandiosos
no seu valor de eternidade
eu passei a priorizar o coletivo
afinal estava nele incluída
hoje o meu maior presente é estar viva
(RENASCIMENTO POÉTICO: poesia em tempos de esperança – Vol. IV).
(Foto de capa por Monthana Morimã).