Quatro poemas de Joaninha Dias
Joaninha Dias, negra mulher, gorda, 38 anos, filha de Ana, Miró e Marcelo. Mãe de Letícia. Candomblecista e Juremeira. Poeta, periférica, pansexual, poliamor, de Recife. Preta Professora na Rede Pública de ensino, pedagoga formada pela Universidade Federal de Pernambuco. Escritora erótica, faladeira de histórias ancestrais, autora de atividades pedagógicas afrocentradas e empenhada na luta diária contra o racismo e na garantia de segurança alimentar, dignidade e justiça para o povo preto.
***
SEMPRE
No cotidiano, no dia a dia
O racismo mostra a face
Bate na nossa cara
E não alivia:
Você passa na rua
Um macho branco assovia
“Eita nega gostosa,
Se eu comprasse, nunca vendia!”
Você tá num ônibus cheio
Daqueles que não cabe seu pé
Olha a cor de todo mundo
90% preto é.
Você anda na cidade
Olha o calçadão
Na população de rua?
Preto, pardo é o padrão.
Você chega no trabalho
Olha pro lado e pressente
Professora antirracista tem pouca
O que tem muita é criança preta carente.
Volta pra casa, cansada
Liga a televisão e passa mal
Só tem preto na tela
Morto, preso, no jornal local.
Muda de canal rapidamente
Quer se animar, se distrair
Mas nos programas e novelas
Preto parece não existir.
Vai na internet e fica sem ação
É muita “opinião” demonstrada
Racismo explícito e velado
Não tem quem aguente não.
E ainda tem a turma
Do “Racismo não existe”
Te deixo na minha pele por um dia
Garanto que tu não resiste.
De resistência eu entendo
Negra mulher não sobrevive sem resistir
E no cotidiano dessa vida
A gente luta é pra não sucumbir.
Vou levar meu filho na escola
Luana mãe preta sapatão
Sou espancada pela PM
Morta por presunção.
Vou passear com os amigos
Comemorar um momento raro
Levo 111 tiros
Cinco corpos dentro do carro.
Roberto, Cleiton, Wilton, Wesley e Carlos.
Sou Pedro
Vou ali rapidinho
De boa, no supermercado
Extra, extra: me chamam de bandido
Pelo segurança sou asfixiado.
Melhor nem sair de casa
Só vou ali comprar o pão
Eu, Cláudia
Sou morta pela polícia
E meu corpo arrastado no chão.
Sou criança negra
Me chamo Miguel
Só queria minha mãe
Me mataram de forma cruel
Fui lançado do nono andar
E quem devia a mão me dar
Me colocou no elevador
Pra morte me mandou
Me abandonou
De mãinha me separou!
Sou Mário, 14 anos
Menino animado
No rap gamado
Mãinha minha rainha
Um PM se achou no direito
De dispor da vida minha
E hoje sou só lembranças
Saudade e esperança
Na minha periferia!
Tava com meu amigo
Carona massa de moto
Vimos os homi na ponte
Paramos logo
Mão na cabeça, não se mexe
Mas foram eles que se mexeram
O tiro veio certeiro
E minha vida ceifou
Eu com 17 anos
Virei estatística
Da polícia racista
Que acabou com meus sonhos
Eu? Me chamo Jhonny!
O racismo é companhia
Essa é nossa vida no Brasil
O povo preto é rastreado
Pela mira do fuzil.
Fuzilamento
Genocídio
Extermínio
Abandono
Racismo
Violência
Chacina…
E a gente segue na lida
Sem nem saber se viva
Esse dia termina.
*
DONA DE MIM
Quem são vocês
Que acham que podem mandar em
mim?
No meu jeito de falar
No meu modo de vestir?
Dizer como o meu cabelo tem que estar
ou como ele deve existir?
Querendo me empurrar seus conceitos
podres
Do que é bonito ou feio.
Quem são vocês
pra achar que podem me dividir no
meio?
Apontar, dissecar
E dizer qual é a minha história
Ou até onde ela vai dar?
Vocês não me querem livre
Não me querem negra,
Mulher
Gorda
Mãe
Pansexual
Poliamor
Periférica
Ativista
Pan-Anfricanista
Juremeira
De Candomblé
Ekedy de OXALÁ
ÊPA BABÁ
e cheia de si.
E cheia de histórias pra contar e ouvir
Pois ancestralidade é tudo
E ela caminha dentro de mim.
Querem mandar nos meus
conceitos, trejeitos, efeitos.
Eu digo apenas: PAREM
Pois senão eu ei de pará-los
Com minha voz
Com minha dança
Com minha música
Com minha escrita
Com minha arte
Com minha inteligência
Com o meu GRITOOOOOOO
É só olhar pra dentro de si
E perceber que quem está fora
Não pode mandar em você.
Então sigo meu caminho lutando
Aprendendo e desaprendendo
Construindo e desconstruindo
Erguendo e derrubando.
E pra você que se acha no direito de
Intervir…
Aguente a rebordosa
Por que tu não manda em mim.
*
HISTORICIDADE
O que tem na tua cabeça?
O que tem na tua alma?
Se acha superior por conta do tom da pele?
A sociedade racista valida isso.
Mas não significa que isso é o certo.
Se for pra medir superioridade,
Eu tenho uma coisa pra te falar.
Na verdade tenho muito a te contar
Sobre HIS-TO-RI-CI-DA-DE!
Eu, aqui
Vim de um lugar de belezas infindáveis,
De riquezas incalculáveis,
Berço da humanidade,
Base da matemática, da medicina, da genialidade.
Lugar de gente bonita, inteligente, articulada.
Que fala diferentes línguas,
Com uma cultura diversificada.
Cito África Mãe,
Lugar no qual minha alma faz morada.
Que mesmo depois de séculos de saques
Sequestros, invasões e ataques
Continua lá, nos ensinando o que é história
Filosofia e arte.
Nos ensinando o que é vida
Nos ensinando o que é resiliência
Nos ensinando que a luta é uma constante e que não queremos nenhum desfalque.
Meu povo nunca foi escravo
Foi ES-CRA-VI-ZA-DO.
Então tire o seu ar de feitor da cara
E não venha dizer que sou cheia de mimimi e marra
O que trago dentro do peito
É a força de um continente inteiro
E o meu sangue vale muito mais
Que um caminhão de diamante cheio.
Sabe o que tem na minha cabeça?
Orgulho e luta.
Sabe o que tem na minha alma?
Orgulho e luta.
Sabe o que eu tenho pra te dizer?
Engole teu privilégio branco
E começa a entender:
Minha história vale muito mais
Do que qualquer superioridade que tu pensa ter!
*
Ser puta hoje em dia
É fazer o que der na telha.
É se assumir livre.
É não ligar pros padrões.
É crescer integralmente.
É acordar de dentro pra fora.
Ser puta é ser você mesma.
No fim das contas,
Não tem nada a ver com sexualidade/sensualidade
Tem a ver com atitude perante à vida.
Tem a ver com renascer…
Putamente Feliz!