Quatro poemas de João Pede Feijão
João Pede Feijão – João já foi Pede Feijão e agora é Ninguém, mas continua sendo Pede Feijão. Sendo o João Ninguém, é alguém com quem se pode conversar sobre tudo. É filósofo, poeta, ensaísta. Gosta de discutir filosofia na mesa do buteco, escreve e pinta, é um nômade. Adora Tabacaria.
***
Não tenho lembrança de quando comecei a ser varrido.
Memória é o grito de um baleiro
num bulixo falido
o cigarro queimando sozinho de tanto desespero
porque a morte
o dom de cura do homem que sofre de uma doença sem cura
o repente dos tapas e tropeços sem condições de poesia…
a delicadeza para mudar de assunto quando se está a mesa
o fale baixo porque passou
a dor de tudo
a graça de tudo
a gargalhada desesperada da verdade vencida
o sentido de nada
o giro do baleiro quando ainda se está em dúvida
o sentido de nada
que bala escolher para esta noite?
*
A dificuldade de manejar a alvenaria da língua é a vida em situação de rua construindo seu ninho com placas, lonas, retalhos de tecidos, papelões, jornais comprados, provas velhas, diários adolescentes, bilhetes de geladeira, notas frias, documentos secretos, panfletos que todos descartam sem ler e sobras de tudo que é sob medida.
É a convicção que cava com as mãos um terreno seco de pedras cortantes e simplórias…
Cada palmo de buraco é uma caduquice de palavra que não sabe que profundidade, nem porquê, nem pra onde…
É uma voz que fala para os fantasmas que existem, sem dúvida.
A inevitável derrota à espreita. Uma convicção irreverente, uma conversa descontrolada, uma razão que não se convence existir. Um filho que se tem porque sim. Um assunto de bunda no meio de uma aula sobre empatia. Uma gargalhada na hora da reza. Um pornô rápido pela manhã a caminho do trabalho. Uma eterna invenção de moda sem futuro. Um descascador que ninguém precisa. A erva daninha crescendo entre as rachaduras do concreto, o capim que teima formar aquela moita, a peste invencível que os pesticidas inventam…
A gagueira infinita…
onde não se sabe a vida fala cada coisa…
*
Estarei trancado em agosto, setembro
é pior, dizem…
não me lembro…
Só te encontrarei
depois que o temporal destelhar os barracos,
derrubar árvores, placares da vida, propagandas com caras de cu,
postes com seus ninhos
de fios elétricos…
Em silêncio sentaremos no topo de algum morro para amar os escombros deixados pela intempérie.
Avistaremos os sulcos na terra e suas pepitas maravilhosas
encontrarão a luz do sol, ignoradas.
Crianças não se importam mais com as riquezas que afloram das tragédias.
Estações só fazem sentido como paisagem de alguma história sem sentido que todos chamam de amor.
Pássaros urbanos, comedores de lixo, comemoram o fim do dia.
Sobreviver é uma alegria.
Existe vida além de agosto, amor
só é preciso paciência.
*
O medo é analfabeto,
fala pouco,
funga feito touro contra os lençóis no varal,
resmunga quando tenta explicar,
urra quando cumprimenta,
surra quando desconfia,
surta quando pensa.
Trabalha de qualquer coisa e
quando não mente, aumenta.
Procria porque todo mundo tem filho,
vive de quem aceita destino em toca.
O medo é simples, não respira
e nada troca.