Quatro poemas de Laura Assis
Laura Assis (Juiz de Fora, 1985) é poeta, tradutora, editora e professora, com doutorado em Literatura pela PUC-Rio. É autora do livro Depois de rasgar os mapas (2014) e de três plaquetes de poesia, além de textos literários e críticos publicados em veículos diversos. Integra o coletivo editorial Capiranhas do Parahybuna, edita a revista ADobra e dá aulas de Língua Portuguesa e Literatura no CAp. João XXIII/UFJF.
O poema “Insight” integra o livro Depois de rasgar os mapas (2014), “Equinócio” integra Duas vezes o sol (2ª edição, 2020); e os demais poemas são inéditos.
***
Insight
Então apoiei o braço na vitrine
de uma antiga loja do centro.
No telefone o jornalista perguntava
sobre a cena literária da cidade.
E alguém que tinha
um lado do rosto
direito,
mas o outro
perfeitamente ao contrário
(como se antes
invertido,
depois
recolocado)
me olhou tão diretamente
por três
ou quatro segundos
e nem sei como respondi
à pergunta sobre a importância
das leis municipais
de incentivo à cultura.
a assimetria na verdade escondida quando ela me olhou
a fração de tempo que levei para entender o que era real
a decisão imediata de escrever sobre aquele momento:
tudo isso é poesia
(palavras não).
*
Equinócio
essa sua metade
que segue na sombra
e se esconde
das fotografias
não se revela
por quase nada
mesmo no breve instante
em que o resto brilha
de uma outra parte
também é memória
do que foi iluminado
e ainda assim se perdeu
hoje falamos dela
com o mesmo cuidado
de quem diante
de estranhos não diz
o verdadeiro nome
de um deus
*
Linha de produção
a bisavó limpava o chão
que os homens brancos sujavam
sua primeira filha
foi costureira
enquanto criava
as próprias filhas
que se tornaram operárias
as quatro na mesma
fábrica
a duas ruas da loja
onde mais tarde
a mãe
trabalharia como caixa
e é mais ou menos assim
que a história vai
até um dia chegar
aqui
por muito tempo puderam
ver pouco além das engrenagens
(apesar de tramarem um mundo
nas margens) outras linhas
aviões cidades
como e por que entrar
em certos lugares
projetados pra manter à parte
gente
como nós
a escolha esteve sempre
longe demais de casa
até que virou mais
que palavra
e quase tudo mudou
mas embora
alguns já tenham se esquecido
eu me lembro
(e talvez por isso
pense
o tempo todo
o tempo todo
o tempo todo
em espalhar pelo chão
os estilhaços
de toda e qualquer vidraça
à primeira luz
da revolução)
*
no limiar de tudo
que é mais perverso
ver o fogo de perto
voltar inteira:
o incêndio
nos olhos
e um plano
nas mãos