Quatro poemas de Leíner Hoki
Leíner Hoki é mato-grossense. Artista visual, escritora, pesquisadora e arte educadora popular. Mestre em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde também graduou-se em Artes Visuais, com habilitação em Desenho. Sua dissertação de mestrado, Tríbades, safistas, sapatonas de mundo, uni-vos: investigações sobre a poética das lesbianidades, foi publicada recentemente pela Editora Urutau.
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Enxada
do seu cabo o corpo
que segura estende
sua forma
de arma
perde a boca no chão
morde
revira a terra
revolta a terra
da enxada nasce
a ordem camponesa
do cravar constante
de arar o ventre
do campo o que de fértil
por dentro da crosta seca
úmido
*
Milharal
De onde eu venho
o milho
se vê até
acabar o mundo
em qualquer saca
de qualquer grão
tem sempre um milho
perdido
pronunciado
amarelo
*
Coruja
Toda coruja é estátua
coluna grega
da paisagem árida
arquitetura clássica do campo
ornamento vigilante da cerca
Até que
Uh uh
assusta
e voa
*
As mãos da minha mãe
não é estranho
que só hoje
minha letra seja parecida
com a da minha mãe?
será que só hoje a minha mãe passou
para minha mão direita
a genética
da sua letra meio cursiva?
às vezes eu escrevo
algum recado
um lembrete pra mim mesma
e acho só às vezes
eu acho que foi minha mãe
quem escreveu pra mim
é engraçado
porque minha mãe e eu não
convivemos muito há uns dez anos
há uns dez anos eu acho
ela não escreve nada pra mim
a próprio punho
ela costumava deixar
bilhetes de manhã
quando saía antes de eu acordar
eu e minha mãe
e a banalidade da minha mãe ser
a minha mãe
e a mãe das outras pessoas
comparativamente
eu e minha mãe não nos parecemos
de costas
como minha mãe se parece
com a minha irmã Lígea
de costas
tanto que as pessoas sempre
confundiam as duas
uma vez eu usei
um vestido velho
da minha mãe
(minha mãe sempre teve
poucas roupas
poucas coisas
uma bolsa só
poucos sapatos
poucas amigas
comia pouco
os dentes da frente
da minha mãe
são muito separados)
eu usei um vestido velho da minha mãe
que ela usava sempre
uma amiga dela pôs
a mão no meu ombro
e disse
Izabel
o nome da minha mãe
minha mão e mão da minha irmã
Lígea
nós duas temos um sobrenome
japonês que significa
jardineiro
nós duas somos
ancestralmente
trabalhadoras da terra
que trabalham com rastelos e
mãos
minha mãe alimenta
as galinhas no galinheiro
todos os dias
ela joga em uma fileirinha
o milho
as galinhas sabem a hora
de comer
minha irmã e eu
temos alergia nas mãos
que se abrem
em cascas de pele
dura
na ponta dos dedos
e nós temos
as digitais dos dedos
inconstantes
minhas mãos feridas
as mãos feridas da minha irmã
minha mãe que é também
a mãe da minha irmã
nesse caso
que somos irmãs de pai
e mãe
iguais
não iguais
os mesmos
apesar de serem diferentes
entre si
e separados
Lígea se parece
muito japonesa
eu não
dessa forma Lígea se parece
minha mãe
de costas
e meu pai
de frente
eu não
minhas mãos
descascam enrugam ferem
minha mão envelhece
e se machuca
como as mãos da minha irmã
minha mãe
é uma mulher magra
minha irmã
é uma mulher jovem
e magra
minha mãe não é velha
ela tem
vinte e cinco anos a mais
que eu
eu não me pareço muito
com a minha mãe
minha irmã
não se parece comigo
as mãos da minha irmã sofrem
da mesma coisa que as minhas mãos
minha irmã e eu
moramos na mesma casa