Quatro poemas de Lorena Grisi
Lorena Grisi nasceu em Salvador. Publicou, em 2021, o livro de poemas Exercícios físicos (Editora Paralelo13S). Tem textos publicados nas coletâneas Hilstianas vol. 1 (Editora Patuá/Instituto Hilda Hilst, 2019), Antologia Ruínas (Editora Patuá, 2020), Terra, fogo, água, ar: coletânea lírica (Edufba, 2020), Mulherio das Letras Portugal (Editora In-Finita, 2020), Parem as máquinas! (Selo Off Flip, 2020), no Jornal Relevo (set. 2021), na oitava edição da revista Felisberta, na revista Aboio, na revista Mulheres do Fim do Mundo (abr. 2021), na segunda edição da Revista Torquato (abr.-jun. 2020) e na Revista Contempo (maio 2020).
Os poemas abaixo integram o livro Exercícios físicos.
***
cardiorrespiratório (com influências da reflexologia)
três mentiras:
alamedas
tese, antítese, síntese
uma artéria longa e livre
começando no coração
e se ramificando
num complexo de túneis
espelhados nas linhas da palma da mão,
que dizem: viverás tantos anos
quanto estiverem desimpedidos esses túneis
subterrâneos
subcutâneos
e o tráfego for ordeiro, polido,
quase um tráfego oriental,
em velocidade média de um quilômetro e meio por hora,
às vezes menos, não há motivo de pressa,
é tudo uma questão de transporte de cargas,
mais que isso é acidente, previsto
na palma da mão, nas fibras da íris,
em pontos da sola do pé que,
novamente, só os orientais
atravessam a existência conhecendo, apertando e
rindo da desgraça alheia
convertida em tráfego engarrafado a todo o tempo
esse não chega nem aos cinquenta
com tão pouco combustível e essas bobinas
desconectadas
os orientais leem o grande livro
escrito no calcanhar de um analfabeto
especialista em geradores de energia elétrica
de edifícios de cem andares
que não abrigariam nem a ele,
nem aos seus filhos, se sua casa desmoronasse,
se a cidade inundasse ou se toda a sorte de líquidos
se misturasse e desalinhasse a arquitetura dos túneis
e dos pequenos canais, denunciando as imperfeições,
as obstruções, os nódulos, os coágulos, os excessos
cometidos em 2014, as marcas, os registros,
as mentiras, que estão todas lá, bombeadas por um músculo,
setenta vezes por minuto elas circulam do pé
à cabeça, os orientais sabem,
eles estão lendo no centro do calcanhar e na divisa
da planta do pé com o dedo mindinho,
eles estão gargalhando da crença em bosques e álamos
no meio de uma cidade da América do Sul,
da crença em corridas, maratonas,
basta um quilômetro e meio, não há motivo de pressa,
e pode-se respirar aliviado pois não há nada de novo nas artérias,
nem nos próprios orientais, eles até se envergonham,
é que as mentiras já foram todas inventadas.
*
Língua morta
Fizessem uma perícia a cada vez que morre uma língua, constatariam males que incluem assassínios, genocídios, catástrofes naturais e outros desastres que geram órfãos, herdeiros de um inventário volátil e invisível. Onde o cemitério das línguas não mais ditas ou escritas, usadas, um dia, para dividir a terra em que se plantou o primeiro grão, onde se fincou a primeira bandeira, onde se construiu a primeira cerca em madeira e então se disse é meu? Em que língua uma mulher foi originalmente ofendida e deu seu grito inaugural de horror? Os despojos conhecemos até hoje, os despojos da guerra são do vencedor e a língua mantida viva também, em sua glória. Como se diz meu na primeira língua morta? Como se diz eu? Como se diz não cante essa canção em voz alta, não narre esta fábula? Fato é que hoje e em qualquer raio de futuro, mesmo antes do café da manhã, conviveremos com restos mortais de línguas por todos os cantos da casa e do corpo, no pensamento, no olho do outro, nas plantas no vaso sobre a mesa, perpétuas (ou Gomphrena globosa). Há uma língua que não diz mais e não se entende, mas se sabe, exatamente como a conversão do dinossauro em galinha. A língua de carne, essa também pode morrer, mordida ou queimada, ardendo, dizendo três vezes palavra de maldição, cortada a faca para aprender que alguns vocábulos talvez devessem estar mortos também. Sepulta-se uma língua e ela jaz num túmulo em que se busca desvendar a pequena fotografia preta e branca, sem data ou epitáfio. Uma língua, hoje, é algo que existe primordialmente para dizer fique aqui, em dez minutos poderemos enxergar o satélite, e é a partir dessa fala que todo o mundo se recompõe e gira. Uma língua morta é um fantasma triste que corre de medo de crianças. É uma sobra nas sombras, a cápsula do tempo enterrada, acidente de trabalho de escavação.
*
Por acaso, acidente, por destino
Quando, ao sair à rua, se encontra o carteiro
em frente ao edifício, em horário diverso daquele
em que ele vem, todos os dias, e ele carrega consigo, além de suor e sorriso,
entrega não encomendada, materializada numa caixa
envolta em mistério e carimbos,
muitos dizem por acaso, coincidência,
por destino.
Mas se à uma da manhã de um dia de férias tranquilo,
em que se dormiu com os anjos, sem conhecer desconforto,
barulho de vizinhos, má notícia, frustrações ou a presença do perigo,
uma árvore despenca e desperta do sono os justos e os injustos,
porque esses últimos também dormem, ao contrário
do que esperam os que creem em narrativas de culpa,
remorso, consciência, paz de espírito, e se a queda dessa árvore acontece
em cima de um automóvel no qual se vê, no banco de trás,
uma cadeira de criança, e essa árvore atinge justa
e precisamente a cadeira ocupada pela criança, que também dormia,
muitos dizem por destino, linhas tortas, fatalidade, desígnio.
Quando a cabeça lateja, quando o corpo não responde
aos seus comandos, quando a necessidade é encolher-se num canto
escuro e fazer uso de comprimidos esteticamente perfeitos em suas formas,
como se esculpidos, circulares em cada uma de suas miligramas,
e ingere-se um, e mais um, e mais um, e mais um porque
não se está acostumado com isso de raciocinar em miligramas,
multiplicar as miligramas, não se está habituado à matemática
dos compostos químicos, no dia seguinte, é previsível,
tocarão a campainha e, não sendo atendidos,
eles dirão acidente, descuido, imprudência,
desatino.
Numa fábrica qualquer, pouco importa em que país,
posto que fábricas são territórios indistintos como aeroportos,
igrejas, desertos, submarinos,
nessa fábrica qualquer, próximo ao fim do expediente,
num dia de alta produção e de funcionários felizes
como só são aqueles úteis à sua tribo,
um vazamento de gás asfixia homens e mulheres que vestiam
uniformes iguais e morriam iguais e as explosões que se seguiram
foram exatamente iguais ao bombardeio da Líbia
em 1911 e muitos disseram, incluindo a igreja,
o dono da fábrica, os marinheiros e os beduínos,
do descaso, coincidência, acidente, negligência.
Ao dizer acaso, recorrentemente, se referem ao pássaro
que fez ninho na calha do telhado e cujos ovos serão chocados
no dia do aniversário do velho senhor dono do imóvel,
ao que também chamarão de coincidência, sincronismo, entretanto,
se o velho senhor odeia pássaros, preferia morar num apartamento
no centro, é exímio caçador e é por aves faminto,
chamarão de acidente, cadeia alimentar, fatalidade, fortuna,
que é o que se diz, recorrentemente, de quem elegeu seu alvo
e dele decide a ventura.
*
Cartografia
No canto da tela com o mapa,
há uma escala de grandeza que
diz
1:300.
Cada trezentos metros do meu caminho estão reduzidos a um
centímetro,
nessa escala de grandeza cartográfica.
Acho engraçado dizer escala de grandeza.
Eu poderia falar: Numa escala de grandeza, eu parti o pão e te deixei o pedaço
maior.
Se diz também está para, na leitura das escalas: “um está para trezentos”.
Esses trezentos metros foram reduzidos
para que, no caminho,
eu não desvie o olhar,
para que eu esteja para,
ou o objetivo de chegar
não se cumpre.
Na física quântica,
o lugar existe enquanto eu olho para ele.
Ele está para mim,
reduzido à escala de minha retina,
que é de 1:10 metros de visão frontal e periférica.
Para mais que isso, o mapa
e a grandeza de encerrar o que não existe,
porque não estou olhando.