Quatro poemas de Mariana Ianelli
Mariana Ianelli nasceu em São Paulo em 1979. É autora de dez livros de poesia, entre os quais a antologia Manuscrito do fogo (2019), que marca 20 anos de poesia. Tem três livros de crônicas e dois infantis. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital Rubem e no site do jornal Rascunho (seção de cronistas). Desde agosto de 2018, é editora da página Poesia Brasileira do jornal Rascunho.
Os quatro poemas abaixo pertencem ao livro (ainda inédito) Terra Natal, a ser lançado pela editora Cousa.
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Como seria
Dançaria por um pedaço de pão
Passaria de mão em mão
Viveria de mesquinhos contrabandos
Hospedaria como se fossem minhas
A idiotia, a lábia, a força bruta,
Inventaria impublicáveis condições
De sobrevida, atravessaria nua
Um corredor de risadas,
Seria sem dúvida aquela prostituta
Que abdica do próprio filho
No julgamento de Salomão.
*
Raízes aéreas
Duas horas de estrada descendo a serra até o mar
Muito brilho molhado em miragem de asfalto
Para ver a florada armada pelas viuvinhas
Uma viagem inimaginável para entrar numa mata virgem
Nunca enterramos um osso, nunca esventramos um bicho
Mas vasculhamos dentro de matrioskas coloridas
Fazemos uma revoada de grous em papel de origami
E tem folhas largas, e vagens, o nosso pé de ervilha.
Ruas e túneis de fumaça para pôr os pés na terra
Não temos uma figueira que seja nossa e nos dê sombra
Não temos um chão rente ao chão nem fruta gratuita
Temos raízes aéreas e uma locomotiva de brinquedo
Que vai livre, sem conhecer o que são trilhos,
Temos um boneco dos Ticuna com cabeça de coruja
E nossas mãos azuis de tinta espalmadas nas paredes
De uma gruta nossa casa, varada pelos ventos,
De onde vemos sem luneta o nascer da lua e as três Marias.
*
O essencial
Isto é para viver rente ao seu corpo,
Veja: o essencial para uma longa viagem.
Não é muito, mas pode esplandecer
Se usado com frequência nos dias
Em que a infância estiver longe.
Você não vê nenhum amigo, não
Encontra pistas de por onde ir,
Cada coisa lhe parece ausência,
Corpo de exílio, orfandade?
Lembre-se dos gatos sem senhorio,
Do sol que alaranjou sua cara
Numa manhã do princípio de tudo
E não se importe tanto com as palavras,
Nem todas pulsam, nem todas ardem.
Para sua viagem, esse pouco será
Potente como um punhado de sementes,
Veja: você só tem de se lembrar.
*
Entre as folhas da palmeira
Numa guerra em fogo baixo
Até os dias amanhecem
Ao contrário. Azuis do azul
De um sol desertado.
Ansiamos por alguma coisa
Que traia nossa desconfiança
Algum bem que se alastre
Mais potente
Que a claque dos carrascos.
Aceitamos rezar pelo improvável.
Rezamos, rogamos, e tanto
Que as poucas folhas da nossa palmeira
Empenham a vida que ainda têm
Em balançar
Por força da nossa louca vontade.
Consideramos a possibilidade
De um sacrifício.
Se depois mudarem os tempos
E uma paz se deixar tocar
De noite até o dia seguinte
Sem que se desfaça,
Se o sol voltar e com ele
A nossa parte clara,
Será coincidência e não será.
Carmen Moreno
Belos poemas! Mariana Ianelli costura os versos tecendo uma atmosfera de mistério. E precisamos nos entregar a ele de forma aberta e intuitiva, com todos os sentidos despertos. Mas sem acreditar que deciframos um enigma, pois seus símbolos sugerem ramificações de possibilidades. Poesia plena de cadência, sofisticação e originalidade.